quinta-feira, 22 de maio de 2025

Desordem realista

 A Concepção

(tríler,
BRA, 2005)
de José Eduardo Belmonte.


 
por Paulo Ayres

Brasília é a capital do país e principal ponto das deliberações que organizam as dinâmicas institucionais que estruturam formalmente a nação. Essa primeira ironia, geográfica, de A Concepção não é fortuita. O caleidoscópio criado por José Eduardo Belmonte necessita de passagens com objetividade cênica para não se perder em sintonia com seu material caótico. E quando sabemos que o ponto de partida são jovens adultos como lacunas sociais se deslocando por um grande centro urbano da racionalidade formal, as peças imagéticas adquirem a base sólida e irônica para se estilhaçarem na tela com certo controle. A informação inicial deixa o desenvolvimento em chão concreto.
 
Esse grande filme de Belmonte lida com excessos no enredo e na própria forma. Primeiramente, na alternância da textura de imagens que acompanham registros diferentes, pontuando a encenação de entrevista documental, a câmera extremamente dopada, o embaçamento, a aceleração de planos curtos etc. O trabalho de edição de Belmonte dá conta de amarrar coerentemente esse caldeirão sensorial, embora uma vez ou outra deslize em algum adorno exagerado. Um exemplo nesse sentido são as legendas informativas: o que começa como um acessório irônico, que avisa algo como uma banda que só durou um dia, torna-se, em certo momento, transbordante ao ponto do delírio desfocado e “espertinho”, sinalizando uma câmera subjetiva. Não compromete a totalidade dramática, mas soa como um abuso do recurso. Mesmo porque, a sequência que mais ilustra como A Concepção é uma obra sobre o niilismo sem cair na arte niilista é aquela da bomba na lata de lixo. O registro inicial é subjetivo, transformando a brincadeira — ou protesto — em algo meio onírico. Em seguida o ângulo muda e o fato se revela numa encenação objetiva, que termina com X (Matheus Nachtergaele) indo até o orelhão causar a dissolução da proposta de dissolução. Nas dimensões de conteúdo e forma, o drama se distancia, momentaneamente, com esse personagem-chave e observa essa ideologia específica evaporando em suas contradições agudas. Não é necessário o tom de repreensão moral ou nem de elogio, essa seita relativista se revela uma constante autossabotagem.
 
Entre depoimentos, drogadições e orgias, A Concepção explica gradativamente como a boemia de certos filhos de diplomatas, não apenas foi na contramão das funções burocráticas da outra geração, como também, foi cada vez mais ao extremo desse caminho. Uma dose de moral materialista já predominava no trio juvenil Lino (Milhem Cortaz),  Liz (Rosanne Mulholland) e Alex (Juliano Cazarré). O enigmático e niilista X entra na vida deles e durante uns três meses tudo gira de forma alucinada em torno do pacto do “Manifesto Concepcionista”. Como foi dito no filme, não se sabe ao certo quem é o X, suspeita-se que é um ex-guerrilheiro que despirocou e se tornou um camaleão existencial, mudando constantemente e evitando deixar registros. Essa é a proposta do guru: ir além da anarquia relacional e ter um estilo de vida em que cada dia o indivíduo se apresenta como uma pessoa diferente. O ritual, que é tanto um símbolo de iniciação quanto elemento de cartaz do filme, é queimar a própria carteira de identidade. Um local preciso que a cenografia escolhe, aliás, remete a uma galeria de arte. É como se o irracionalismo aberto da arte niilista de tipo abstrato saísse da tela de contemplação e ganhasse vida. Sabe-se que certas performances artísticas utilizam até cobaias, mas aqui, no caso, são vivências “artísticas” que saem por aí à toa e ao léu.
 
Uma obra como A Concepção guarda certa complexidade até quando o objeto de análise é a filiação aos gêneros. O drama tem um conjunto de elementos que apontaria, em outras circunstâncias, para a dramédia: narrativa veloz e fragmentada, bastante ironia, mudanças de composição imagética e trilha sonora recheada de canções. Entretanto, por mais estranho que seja para um filme com tanta festança e suruba, a tensão predomina sobre o tesão. Refletindo a grande desorientação prática da trama, forma-se um tríler histórico em que a angústia brota como consequência necessária do apagamento de si enquanto forma de escapismo radical. A narração não aponta o dedo acusador num tipo de ressaca moral, somente acompanha como esse anarquismo de estilo de vida é uma fuga repetida que se torna fuga também no sentido jurídico, quando a polícia  desmonta a seita. Nesse ponto, ademais, abre-se uma segunda questão referente à classificação do drama realista, pois o tema transita por indicações criminais e políticas e, na sua especificidade hedonista, não se acopla a nenhum desses subgêneros.
 
O grupo, ao menos no seu núcleo duro, é de origem abastada e desorganizado demais para o crime organizado e mesmo para a quadrilha eventual. Até há coisas como relações com o tráfico de drogas e falsidade ideológica, mas o aspecto criminal, enquanto modo de vida, é dissolvido no meio do leque incontável e performático. Até mesmo o trio fugitivo, quando todos vão embora, busca empregos casuais como seus relacionamentos. Da mesma forma, o próprio X até fala algo de política, mas os concepcionistas passam longe dela. Não possuem a mínima organização e orientação de grupo clandestino. Assim como podem ou não criticar as religiões e, independente disso, um pouco de religiosidade esotérica vaza nesse acordo apolítico de “niilização”. A tão falada morte do ego ganha uma versão errante e, por fim, ultra-individualista.

O desejo melancólico de Lino, sonhando que um dia encontrará uma estabilidade afetiva e com raízes, lembra, em certa medida, Kim Ki-woo, de Gisaengchung (2019), imaginando um final feliz dificílimo de acontecer, mas que lha dá força para continuar vivendo, resistindo ao cotidiano pobre. A filosofia de X, sofista moderno, aponta para a contínua transformação do indivíduo, mas se esquece que, ao mesmo tempo, a identidade também permanece na mudança. Belmonte e sua equipe, por outro lado, comandam um tríler de costumes que reflete a continuidade na descontinuidade como contradição real, processual e não excludente do passado.
 
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Lista de historical thriller no subgênero fiction of manners:
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