(tríler,
CAN, 1996)
de David Cronenberg.

por Paulo Ayres
Presente em várias teorizações em direção a uma ética materialista, a ideia de que o reflexo cotidiano e a filosofia devem se ocupar da vida, pois quando a morte está já não estamos. Diferente de Epicuro e Espinoza, estão filósofos irracionalistas como Heidegger e certas tendências modernas, para quais a morte exerce algum tipo de fascínio ou de contemplação mórbida. É algo que vai além de um Dia de Los Muertos presente em culturas como a mexicana. Quando tais tendências ultrapassam certo limite epidérmico da postura gótica, é bom ficar de olho pois uma forma não crítica de romantismo artístico, por exemplo, pode se tornar ultrarromantismo. A desilusão como queda compreensível transforma-se, abruptamente, em derrotismo excêntrico. Quando David Cronenberg fez Crash colocou esse tema para colidir, frontalmente, com a temática da sexualidade e o resultado da batida foi chamativo, mas moribundo.
Tudo começa no desenvolvimento narrativo quando um casal não experimenta mais o prazer que sentia, no acordo de relacionamento aberto que fizeram, e decide dar um passo além. É depois de um acidente de trânsito que um produtor de filmes, James (James Spader), vai tomando conhecimento gradual de um clube bem fora da curva. Todos ali compartilham fantasias sexuais constantes envolvendo o impacto metálico de automóveis e lesões corporais decorrentes disso. Com o tempo, ele introduz a esposa, Catherine (Deborah Kara Unger), nesse tipo bizarro de excitação sexual, fazendo parte dessa associação secreta. Os diálogos sussurrados e distantes do casal estacionam na medida correspondente nesse ambiente frio e agonizante. Tríler de costumes, Crash também acrescenta o fascínio por automóveis como uma terceira camada temática, mas de uma maneira diferente de reliqueiros e restauradores. O ponto de interesse são carros amassados, batidos, capotados e levados para um canto da cidade enquanto ferro velho. Há até veículos novos e seminovos, como na cena na loja de carros. Contudo, da mesma maneira que o corpo humano passa a ser mais valorizado pelas feridas e cicatrizes profundas, carros em bom estado exercem estímulo sensorial no grupo na medida em que podem ser danificados. Nesse sentido, a personagem de Patricia Arquette apresenta o corpo mais venerável nessa lógica de contemplação: arrasta as pernas, anda com dificuldade com aparelhos restritivos e profana a mercadoria com um pequeno rasgo no banco da frente do automóvel. No ritmo de ladeira a baixo do drama niilista, o servidor comercial parece não saber se fica satisfeito ou não na transgressão do atendimento.
Para entender melhor como Cronenberg se deixa conduzir pela ideologia específica do grupo, sendo passivamente passageiro de sua criação, é interessante comparar o drama canadense com o brasileiro A Concepção (2005). Nesse último, o diretor José Eduardo Belmonte filma com interesse, mas em distanciamento adequado, outro grupo marginal e hedonista, ironizando suas consequências como um escapismo que se contradiz cada vez mais. Cronenberg, em Crash, pega carona na associação e, diante da pergunta inicial de James sobre qual é o objetivo disso, não demonstra intenção de autoironia que leva ao contexto histórico. Tal como acontece em certas sátiras pornôs, a dinâmica narrativa faz um círculo enfadonho que alterna cenas de “intervalo” e cenas de sexo. Procurando impulsionar esse fluxo transgressor, no enredo está Robert Vaughan (Elias Koteas), o grande entusiasta que se apresenta como um artista incompreendido, tentando negar a coisificação cotidiana com uma massa de humano-coisa que muda radicalmente a rota, mas longe de superar.
Sem uma carona, uma companhia metafórica, o tríler histórico é uma “infinita highway” sem um ponto de referência externo e de estabilidade racional. Um tipo de trânsito binário, sem ponto de retorno e nem de chegadas provisórias. Ainda que o tesão seja o combustível temático, Crash é um filme broxante que injeta adrenalina como um desfibrilador para personagens na proximidade da morte. Vontade de potência. Vontade, só a vontade.
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Lista de historical thriller no subgênero fiction of manners:
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