terça-feira, 20 de maio de 2025

Trabalho morto

The Navigator 
 
(farsa,
USA, 1924)
de Buster Keaton
e Donald Crisp. 
 

por Paulo Ayres
 
Mais que um cenário, o navio fantasma é a essência de The Navigator. A introdução do filme gasta bastante letras para nos indicar um contexto até geopolítico e bélico, sem entrar em detalhes, visando criar um palco onde um casal da classe capitalista está isolado em alto mar. Nau à deriva, Navigator, o navio fantasma, é um local de ficção dura como a estrutura de metal. A farsa faz questão de deixar claro que por ali o que há de fantasmagórico é em sentido figurado. Rollo Treadway (Buster Keaton) se assusta com uma fotografia de marinheiro na escotilha. Betsy O'Brien (Kathryn McGuire) se assusta com Rollo correndo com um lençol. No balanço das ondas, várias portas se abrem. O medo e a angústia, no entanto, são elementos da luta pela sobrevivência fora da civilização e tentando resistir com produtos dela.
 
Com seu navio fantasma, Buster Keaton tem um filme focado no trabalho morto. Curiosamente, Charlie Chaplin, seu grande “competidor” no desenvolvimento da farsa física no cinema, faria um filme mais focado no trabalho vivo com Modern Times (1936). Além do próprio capital, o trabalho morto é uma categoria da economia política que abarca os produtos da atividade material humana, incluindo maquinários e instrumentos. Par categorial que faz sentido no contínuo processo produtivo, em The Navigator ilustra uma porção de bens contidos dentro desse outro produto gigante que é o próprio navio isolado.
 
No drama de ficção científica Passengers (2016), um casal acordado e isolado interage com um maquinário futurológico numa nave espacial. Em The Navigator, o casal preenche a sátira no esforço de realizar tarefas simples, ironizando a dificuldade de ricaços em fazer café, cozinhar e até abrir uma lata com um tipo de furadeira. Nessas andanças performáticas por entre o navio, o cinema mudo amplifica a lupa sobre os afazeres mais banais e, nesse contexto farsesco específico, revela uma carga débil de força de trabalho na movimentação daquele conjunto de trabalho morto.
 
Semanas se passam, trajados de marinheiros, os dois se adaptam ao trabalho material, vivendo uma vida cotidiana com engenhocas mirabolantes. Entretanto, o trabalho morto continua predominante na figura do navio sem rumo.
 
A sequência em que Keaton veste uma roupa de mergulhador e é um “man at work” no fundo do mar mostra o talento dele e do co-diretor Donald Crisp para encenar situações em lugares inusitados e, também, para ramificar visualmente um roteiro bem simples. Nesse sentido, assim como o vento que leva vários chapéus de Rollo, a luta com o peixe-espada é a própria natureza sendo mais ativa que o casal em movimento de recuo e sobrevivência. Sem conseguir a condução do “cadáver” metálico, o navio fantasma e lixo marítimo, é, por fim, objeto de ataque e conquista de uma sociedade natural que vive numa ilha. O povo do comunismo primitivo não consegue comer o casal burguês — seja lá em que sentido do verbo for. Suposição da reviravolta, a sátira edificante mergulha no contrato matrimonial.
 
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