sábado, 24 de maio de 2025

Conservadorismo liberal

  Alice in Wonderland

(comédia,
USA, 2010)
de Tim Burton.


 
por Paulo Ayres

Antes de tudo, de divagar que Alice (Mia Wasikowska) é essa que Tim Burton deu vida em seu filme, é preciso colocar a empreitada em seu devido lugar ficcional. Essa é uma questão mais básica que a primeira e a última partes que se passam no mundo real no século 19. A própria protagonista percebe que as regras de etiqueta da nobreza caduca ficam cada vez mais sem sentido e comenta o que aquela festa no jardim luxuoso não pode evitar: o declínio da aristocracia. O deboche liberal do moça, contudo, não impede que ela caia em contradição despencando na toca do Coelho Branco. Saiu de lá apontando tendências de costumes mais dinâmicos, sem nenhum príncipe encantado e entrando de cabeça no mundo dos negócios das rotas comerciais. Um bom espelhamento das contradições na passagem da Era Vitoriana, embora em tom de conciliação forçada.
 
O devido lugar ficcional, dito anteriormente, significa entender essa comédia épica em sua especificidade de adaptação legítima, mesmo sendo somente apenas mais uma boa sátira edificante. E aí entra a capacidade artística de Burton, que vai além de filmar gente pálida em cenários extravagantes. As bases literárias são dois livros de Lewis Caroll — Alice's Adventures in Wonderland (1865) e Through the Looking-Glass (1871) —, mas com uma Alice beirando os vinte anos. Alice in Wonderland é uma entre as versões em live-action da Disney das suas animações clássicas. Como se nota em certos exemplares, não é difícil fazer uma adaptação um pouco melhor, com um grau a mais de complexidade. Acontece que, por seu contexto de ficção épica com autoironia, Alice in Wonderland (1951) já é uma comédia interessante. O filme antigo representa a Disney e é um dos bons longas da produtora. O de 2010 é do Burtonverse. Ou seja, essa é a Alice de um autor com um estilo pessoal considerável, assim como ele tem a sua Violet Beauregarde (AnnaSophia Robb) em Charlie and the Chocolate Factory (2005). Independente se são patrimônios de monopólios culturais concorrentes — Disney e Warner —, faz sentido esse Chapeleiro Maluco (Johnny Depp) surgir por um portal, como mais um inimigo excêntrico do Batman, na Gotham City em que há a Catwoman de Michelle Pfeiffer.
 
Esse filme de Burton até tem uma continuação que ele não dirige — Alice Through the Looking Glass (2016) —, porém, o próprio primeiro filme tem um clima meio de continuação, meio de fanfic. É o retorno da Alice adulta lembrando, aos poucos, que ela já fez aquela trajetória quando criança. Nesse ponto também está outra característica dessa fantasy comedy, colocando nesse limbo adaptativo a questão do filme live-action que se relativiza no abuso do fundo e personagens em computação gráfica. Uma leve melancolia gótica borra as cores do mundo subterrâneo. Um humor aberrante brinca com os efeitos visuais da proporcionalidade de tamanho. Helena Bonham Carter faz uma Rainha Vermelha com uma cabeçona em relação ao resto do corpo e Alice varia de tamanho em certas ocasiões, interagindo com outras personagens e até as tocando, às vezes. O que sobe de tom ali, contrastando de maneira binária com a melancolia gótica comentada, é o clima retumbante de guerra nobre. Bandersnatch, pet grande que arranha Alice antes de ser sua montaria amigável, não pode ser a criatura vilã. Surge Jabberwocky, um dragão escuro e horripilante como rival profetizado da guerreira. Esse clímax conservador de batalha é tão destoante que é preciso o Chapeleiro fazer uma dancinha da vitória para realinhar a encenação comediesca.
 
Até pode ser que a Rainha Vermelha represente a monarquia absoluta e a Rainha Branca (Anne Hathaway) represente a monarquia constitucional, mas o fato é que o colonialismo britânico expande seu universo no período. Alice não deveria ter consciência disso mesmo, mas o “oráculo” narrativo deveria ironizar isso antes de virar uma borboleta azul.

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