Rádio Pirata
(folhetim,
A alguns meses do afrodisíaco “verão da lata”, que abençoou os mares cariocas, o diretor Lael Rodrigues deu o seu hello a um outro escândalo nacional. Em 1987, no corre-corre entre os planos do ministro Dilson Funaro, Lael bateu continência para um fenômeno que galopava: as transmissões ilegais, anônimas, a revolta nas “ondas do rádio”.
Colocar “ondas” e “rádio” na mesma frase pode dar sono em tempos de flash mob. Mas a expressão batida e “xangai” (grita algum amigo de Cauby Peixoto, apertando o penhoar) era o máximo de liberdade. Um festim anárquico, revoltado, que prometia combater as mamatas “impostas pelos órgãos oficiais”. As tais micro e macro-relações de poder, que debulham em lágrimas a nossa eterna fisiologia.
Na falta de Internet, as rádios piratas vendiam os libelos de todas as causas. Eram consideradas coisas de responsa, feitas por gente de caráter em seus cavalos brancos, guardando as espadas junto ao peito. Como o cargueiro Solana Star ainda não havia depositado as 15.000 latas da melhor matéria-prima nas praias de Ipanema, o remédio para os pardos do Posto 9 — entre eles, Lael — era partir para a doce guerrilha.
Poucas temporadas antes, Lael Rodrigues dirigiu Bete Balanço (1984), o festivo cruzamento entre Cats [1981] e rock brasileiro. Optando pelo denuncismo, Rádio Pirata usa o título como metáfora. Parece dizer a todo tempo: “venham, a verdade oculta vos libertará”.
Das trevas, Pedro Bravo (Jayme Periard) se opõe ao “sistema”, representado pelo ocre e cinza de uma firma de computadores, metida em transações inescrupulosas. A teteíssima Lídia Brondi, aqui Alice Souza Dias, confere ao cabeludão-barbudo o instrumental que ele precisava: uma rádio, veiculando informações “quentes”, administrada de dentro de um carro que circula, indomável, por todo o Rio de Janeiro.
“Toma cuidado, baby.” “Eu te amo, porra.” Nada mais a dizer. Depois disso, apenas o silêncio. Os diálogos inesquecíveis já fazem de Rádio Pirata um carrossel do cinema brasileiro. Mas no filme também se encontra o estereótipo da patrícia oitentista: Alice. A garota mostra partes do corpo como se estivesse em um comercial de cigarros. Na modalidade jovem free (talvez futura mãe de produção independente), ela joga uma centelha nas mulheres que patinavam entre o “artístico” e o “político”.
Afinal, Alice é amiga de uma trupe de mímicos (sim, sempre havia uma trupe de mímicos) que, a partir de uma convenção qualquer sobre a arte, imaginam prestar os melhores serviços ao mundo. Cazuza, com suas lavandas espargidas sobre o derradeiro LP, gritaria que “a burguesia fede”, para logo em seguida emendar os hipócritas versinhos redentores: “eu sou burguês mas sou artista, estou do lado do povo.”
A logomarca de Rádio Pirata utiliza um código repetido (um raio elétrico), como se Zeus tascasse fogo na programação visual dos anos 80 para todo o sempre. A mesma imagem do objeto que o furioso grego segura em uma das mãos parece ter desabado em uma quantidade descomunal de produtos na década: bolsas, lojas, pranchas de surfe. Somada aos computadores e às especulações sobre o sexo sem compromisso, Lael Rodrigues cumpriu o papel de fazer as introduções para a época em que vibrou como aprendiz de feiticeiro.
Lael conjugou as demandas escandalosas (corrupção, alta inflacionária), com uma incipiente consciência ecológica (alertas sobre usinas nucleares), consumismo e esporte, para dar um alívio. A cada asa delta que surge em cena e a cada gadget espetaculoso, a audiência se perde em devaneios. Como os jovens poderiam ser tão super-heróis? Ao mesmo tempo em que se preocupam com o meio ambiente, passam o rodo nos velhos parlapatões e higienizam os furos de um mundo corrompido. Evidente que a expectativa frustrada acabou levando a um não-ser. O esquematismo de tantas virtudes não encontra, nem por um instante, correspondente na realidade.
O clipe com a cantora Marina — quando ainda não utilizava o sobrenome — cristaliza o lado atmosférico de Rádio Pirata. A alguns dedos de ser um romance noir, mas salpicado com vitamina tutti-frutti e adotando a estratégia de coletânea do pop brasileiro, algo tão em voga no mercado exibidor da época. Logo retoma, porém, o comentário sobre as profundezas sócio-econômicas de nossas vãs almas e assim deixa na neblina apenas um pó, mero rastilho.
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Lista de historical feuilleton no subgênero political fiction:
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