terça-feira, 27 de maio de 2025

Bairro proletário

They Cloned Tyrone  
 
(dramédia,
USA, 2023)
de Juel Taylor.



por Paulo Ayres

Uma ficção científica sobre experimentos secretos com cobaias humanas proporciona uma possibilidade vasta de pensar, metaforicamente, sobre as formas modernas de controle, sutis e explícitas, de manutenção da ordem coisificadora. Até Michael Bay fez um bom drama sobre clonagem com The Island (2005). O drama de Juel Taylor se passa em outro ambiente da sociedade burguesa e com outra proposta. No tríler de Bay, a trama se concentra na reflexão teórica sobre a genética aplicada e cria um sentido figurado com uma consciência de classe específica. Um casal protagonista de clones foge e retorna para ajudar na libertação de seus iguais. Em They Cloned Tyrone, a maior parte dos clones estão confusos, mentalmente debilitados. O cenário extravagante de sci-fi — com direito a fumaça no rodapé do laboratório — está no subsolo de uma aparente normalidade da vida cotidiana atual, sem apetrechos de futurologia. O personagem que dá nome ao filme, Tyrone (John Boyega), é a figura do malandro avoado. Morre e renasce, algumas vezes, com a memória atrasada e acordando num muquifo.
 
Taylor filma o bairro proletário em que se passa o enredo numa dramatização que ilumina o espaço pauperizado. É recorrente frestas de luz nas janelas, abrindo horizontes na rotina precária e movimentada com figuras típicas relacionadas com violência, criminalidade e putaria. Essa urbanidade visual da fotografia, revelando uma pobreza árdua e convidativa, contribui para a narrativa espelhar ativamente a vida, embora num contexto de vulnerabilidade social. E como o tema aprofunda a coisificação cotidiana com a metáfora dos experimentos científicos secretos, esse contraste é muito bem-vindo.
 
Tyrone, seja lá com qual corpo clonado for, se junta com a prostituta Yo-Yo (Teyonah Parris) e um dos seus clientes Slick Charles (Jamie Foxx), desvendando, paulatinamente, aquela teoria da conspiração que se revela real na techno-dramedy. Junto ao desenvolvimento da questão, o trio é nosso guia geográfico na história. A desconfiança começa num restaurante fast food através de risada coletiva devido a alguma substância artificial no frango — até o sisudo Tyrone ri, simbolizando ironicamente uma ruptura cotidiana que destoa muito da média constante. Todavia, o percurso mais destacado na dramédia é sair do êxtase — meio religioso, meio dopado — de uma cerimônia na igreja e, depois de descobrir o laboratório subterrâneo, desembocar na excitação — meio sensorial, meio erótica — de uma boate com strippers. Ambientes contraditórios de uma paisagem urbana variada e pulsante, que até pode ter uma coisificação profunda nas relações sociais, mas nunca absoluta, como petrificou o amargurado Theodor W. Adorno.
 
Um vilão capataz (Kiefer Sutherland) se apresenta com o sugestivo nome de Nixon e faz o discurso direto, justificando a eugenia e outros experimentos. O lembrete que ele traz ao trio e demais é que aquela democracia liberal tão avançada em certos aspectos nasceu de acordos elitistas de senhores de escravos e que as lutas de classes estão sempre ocorrendo em expressões da vida cotidiana. Desse cinismo inimigo emerge a consciência organizativa dos subalternos do “andar de cima” naquela periferia. E o curioso é que vem do lumpesinato armado a iniciativa de libertação das cobaias humanas, destruindo o laboratório.
 
They Cloned Tyrone até pode lembrar Us (2019), de Jordan Peele, mas o uso da clonagem como metáfora não é parecido. Na sátira realista de Peele, o panorama é macroscópico e a própria organização social moderna enquanto células familiares é objeto irônico. Na protosátira edificante de Taylor, o assunto contempla diretamente a desigualdade de renda e a ideologia racista. O “they” é a terceira pessoa do plural, representando “o sistema”. E não é surpresa que Tyrone descubra que entre “eles” está “ele próprio” também, em certo sentido metafórico, como um coordenador pequeno-burguês. 

= = =
Lista de sci-fi dramedy no subgênero techno-fiction:
= = =

Nenhum comentário:

Postar um comentário