por Paulo Ayres
Uma ficção científica sobre experimentos secretos com cobaias humanas proporciona uma possibilidade vasta de pensar, metaforicamente, sobre as formas modernas de controle, sutis e explícitas, de manutenção da ordem coisificadora. Até Michael Bay fez um bom drama sobre clonagem com The Island (2005). O drama de Juel Taylor se passa em outro ambiente da sociedade burguesa e com outra proposta. No tríler de Bay, a trama se concentra na reflexão teórica sobre a genética aplicada e cria um sentido figurado com uma consciência de classe específica. Um casal protagonista de clones foge e retorna para ajudar na libertação de seus iguais. Em They Cloned Tyrone, a maior parte dos clones estão confusos, mentalmente debilitados. O cenário extravagante de sci-fi — com direito a fumaça no rodapé do laboratório — está no subsolo de uma aparente normalidade da vida cotidiana atual, sem apetrechos de futurologia. O personagem que dá nome ao filme, Tyrone (John Boyega), é a figura do malandro avoado. Morre e renasce, algumas vezes, com a memória atrasada e acordando num muquifo.
Taylor filma o bairro proletário em que se passa o enredo numa dramatização que ilumina o espaço pauperizado. É recorrente frestas de luz nas janelas, abrindo horizontes na rotina precária e movimentada com figuras típicas relacionadas com violência, criminalidade e putaria. Essa urbanidade visual da fotografia, revelando uma pobreza árdua e convidativa, contribui para a narrativa espelhar ativamente a vida, embora num contexto de vulnerabilidade social. E como o tema aprofunda a coisificação cotidiana com a metáfora dos experimentos científicos secretos, esse contraste é muito bem-vindo.
Tyrone, seja lá com qual corpo clonado for, se junta com a prostituta Yo-Yo (Teyonah Parris) e um dos seus clientes Slick Charles (Jamie Foxx), desvendando, paulatinamente, aquela teoria da conspiração que se revela real na techno-dramedy. Junto ao desenvolvimento da questão, o trio é nosso guia geográfico na história. A desconfiança começa num restaurante fast food através de risada coletiva devido a alguma substância artificial no frango — até o sisudo Tyrone ri, simbolizando ironicamente uma ruptura cotidiana que destoa muito da média constante. Todavia, o percurso mais destacado na dramédia é sair do êxtase — meio religioso, meio dopado — de uma cerimônia na igreja e, depois de descobrir o laboratório subterrâneo, desembocar na excitação — meio sensorial, meio erótica — de uma boate com strippers. Ambientes contraditórios de uma paisagem urbana variada e pulsante, que até pode ter uma coisificação profunda nas relações sociais, mas nunca absoluta, como petrificou o amargurado Theodor W. Adorno.
Um vilão capataz (Kiefer Sutherland) se apresenta com o sugestivo nome de Nixon e faz o discurso direto, justificando a eugenia e outros experimentos. O lembrete que ele traz ao trio e demais é que aquela democracia liberal tão avançada em certos aspectos nasceu de acordos elitistas de senhores de escravos e que as lutas de classes estão sempre ocorrendo em expressões da vida cotidiana. Desse cinismo inimigo emerge a consciência organizativa dos subalternos do “andar de cima” naquela periferia. E o curioso é que vem do lumpesinato armado a iniciativa de libertação das cobaias humanas, destruindo o laboratório.
They Cloned Tyrone até pode lembrar Us (2019), de Jordan Peele, mas o uso da clonagem como metáfora não é parecido. Na sátira realista de Peele, o panorama é macroscópico e a própria organização social moderna enquanto células familiares é objeto irônico. Na protosátira edificante de Taylor, o assunto contempla diretamente a desigualdade de renda e a ideologia racista. O “they” é a terceira pessoa do plural, representando “o sistema”. E não é surpresa que Tyrone descubra que entre “eles” está “ele próprio” também, em certo sentido metafórico, como um coordenador pequeno-burguês.
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Lista de sci-fi dramedy no subgênero techno-fiction:
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