quinta-feira, 29 de maio de 2025

Mutação pontual

Zootopia

(comédia,
USA, 2016)
de Byron Howard
e Rich Moore.
 


por Paulo Ayres

Zootopia é um dos casos recentes que rompem com uma longa tradição nos longas animados da Disney ao conseguir ser uma boa sátira em abordagem comediesca. Uma daquelas animações digitais que parecem que foram feitas pela Pixar — a empresa subsidiária se destaca, geralmente, por fazer bons produtos no gênero. A comédia da Walt Disney Animation Studios, ademais, está num terreno temático bem delicado, caminha cuidadosamente para não fazer muitos estragos e se sai, relativamente, bem. Ok, há um rastro de contradições na projeção paródica dessa sociedade de animais antropomórficos, mas isso também significa a ousadia de encaixar um punhado de reflexos sociais numa representação com outro nível de ser.

A coelhinha Judy Hopps (voz de Ginnifer Goodwin) é parte de uma demanda trabalhada pelos monopólios culturais para absorver, gradualmente, certas exigências postas pela crescente complexificação da sociedade moderna. Interiorana, ela é o olhar de fora, inocente, porém, esperto e aplicado, que presencia as contradições no grande e diversificado centro urbano de mamíferos chamado de Zootopia. Coelha imaculada, pero no mucho: há um empurrãozinho, que os realizadores dão nela, para que haja um manjado tropicão seguido de reatamento com lição de moral. A policial pioneira se deixou levar pelo preconceito — existente, mas disfarçado pelo pacto civilizatório contemporâneo — e embarcou no discurso intolerante (metáfora do racismo e da xenofobia), magoando seu parceiro de aventura, Nick Wilde (voz de Jason Bateman), uma raposa que representa a malandragem e um cordeiro em pele de lobo.
 
É até questionado o slogan da megalópole animalesca que diz que ali “você pode ser o que você quiser”, embora superficialmente. A trama se desenvolve como descrença passageira e reafirmação no “vencer na vida” nessa sociedade capitalista. Uma visão conciliadora da selva competitiva coexistindo com a constante vigilância comunitária e a boa administração, prosperando por obra da cidadania e da tecnologia. Aliás, é estranho constatar que se trata de uma ficção científica, mas é a classificação mais precisa para essa realidade paralela que trata de uma determinada linha de evolução. Em boa parte das animações comediescas no cinema há elementos de ficção de fantasia, incluindo enredos com animais vivendo no nosso mundo, como Ratatouille (2007) e Rio (2011), numa antropomorfização secreta e de baixa intensidade.

Felizmente, é mostrado algum grau de antagonismo. Há conflitos classistas, contrastes regionais e até crime organizado. Porém, o “multiculturalismo” urbano mistura tudo: diferenças naturais, fenotípicas, e diferenças socialmente construídas que geram contradições entre as “espécies” (entenda-se também etnias e nacionalidades). Por exemplo, a existência da burocracia só pode ser porque colocaram “bicho-preguiças” nesses empregos públicos. Sim, na amálgama desastrada com a caricatura tripartite de indivíduo, classe e “espécie”, uma dose pequena de darwinismo social continua na proposta de espelhamento zoológico do nosso mundo. Obviamente que o filme, por ser uma sátira edificante, não deixa o naturalismo crescer e dominar, mas há um ruído de fundo com essa característica que parece estar à espreita em cada esquina, ainda mais que a trama fala de uma conspiração científica para deixar parte dos cidadãos com características de ancestrais predadores. Isso, por outro lado, é o que dá uma tensão bem-vinda a um produto moderado pensando no público infantil. Ao menos, o título da comédia é sincero no seu idealismo: a defesa de uma utopia.

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Lista de sci-fi comedy no subgênero eco-fiction:
[0] Primeiro tratamento: 2018.
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