Inglourious Basterds
(folhetim,
USA/GER, 2009)
de Quentin Tarantino.
de Quentin Tarantino.

por Paulo Ayres
Além de ser o primeiro folhetim histórico de Quentin Tarantino, Inglourious Basterds é sua única ficção política. Política no sentido de subgênero temático. Desde a observação teórica do general prussiano Carl von Clausewitz, ficou nítido que a guerra nada mais é do que a política se desdobrando em um palco não diplomático. Esse tipo de ficção histórica, então, reflete determinadas trajetórias de vida que têm certas expressões como as atividades em foco: a política institucional, o sindicalismo, os movimentos sociais, os partidos legalizados, a espionagem estatal, os grupos clandestinos e a guerra propriamente dita. O filme de Tarantino, então, é um dos exemplos que deixam algumas dessas conexões mais evidentes, pois é uma obra sobre a Segunda Guerra Mundial que não está interessada nos campos de batalha. Seu olhar percorre uma França ocupada pelos nazistas, numa vida cotidiana relativamente estabilizada pelos colaboracionistas nessa invasão. Constrói uma fachada de contatos políticos aparentemente civilizados que é demolida em breves episódios de barbárie, sendo a grande atuação do austríaco Christoph Waltz, como o Coronel Landa, a essência dessa proposta. O vilão refinado representa uma expressão do irracionalismo moderno camuflado com a formalização técnica, cultural e disciplinar. A operação de Inglourious Basterds é se infiltrar nesse meio, nessa passagem histórica, e expor a podridão por trás daquelas regras de etiqueta. Até aí é uma ótima ideia se não fosse por um detalhe fundamental: Tarantino termina imitando certa falsidade do objeto criticado.
Não, a questão nem é a existência do grupo brucutu que dá nome à sátira, os Bastardos Inglórios, soldados estadunidenses judeus dispostos a matar (ou “marcar”) qualquer nazista que encontrar por lá. Essa violência celebrada pelo cineasta, mesmo sendo mostrada como algo cool, se encaixa no projeto como um elemento de resistência que descortina a brutalidade que estava envolvida naquele contexto de barbárie colonial piorada e voltada contra parte dos próprios europeus. A rusticidade da turma de Aldo Raine (Brad Pitt) também deixará à mostra sua fragilidade de repertório quando se disfarça e se infiltra numa festa do fascismo alemão. Através desse núcleo, aliás, Tarantino lembra de forma pertinente das marcas da colonização na América e o extermínio de indígenas. Mas a referência é minúscula. Ainda mais que o filme contrapõe a imagem de estadista de Adolf Hitler (Martin Wuttke) com uma rápida cena em que reverencia a liderança de Winston Churchill (Rod Taylor). Quando poderia trazer, em alguns dos diálogos afiados, o assunto do racismo e do colonialismo que os ingleses entendem tão bem. Será que, nessa realidade paralela, Portugal fascista também vai ser um dos membros-fundadores da Otan?
Mesmo assim, algumas imprecisões históricas e focos direcionados para determinadas áreas, em vez de outras, poderiam não comprometer tanto o resultado do painel que Tarantino escreveu e filmou. Alguém poderia dizer que é apenas um “recorte” de certo local e tempo do conflito que durou cerca de seis anos, mas o conteúdo é justamente uma síntese do processo total. E o que diz essa síntese e as alterações bruscas que Tarantino fez nos fatos históricos? Bem, é uma versão do ocorrido que expõe uma visão conjuntural das coisas. E um dos elementos aponta que se trata de uma ideologia com um claro contorno sem ingenuidade: o desaparecimento da União Soviética no enredo. É como se o principal adversário do imperialismo fascista não existisse no Tarantinoverse. Nessa Torre de Babel de vários núcleos, com diversos idiomas, nada de encaixar os comunistas soviéticos. Alguém também poderia invocar certa noção de liberdade artística de criação, mas o local da especulação por excelência é a ficção especulativa (ficção de fantasia e ficção científica), que não só pode alterar como criar tramas interessantes inserindo nos fatos históricos extraterrestres, fantasmas ou viajantes do tempo, por exemplo. Para uma ficção histórica alcançar uma legitimidade com um enredo de "e se tal coisa ocorresse diferente" é preciso que isso esteja direcionado para comentar criticamente certos elementos, e não como um fim em si mesmo de mero capricho ou deleite violento.
É na questão envolvendo a Operação Kino e um edifício de cinema, palco da metalinguagem, que o roteiro espertinho tropeça na autossabotagem artística. É o local de conclusão do filme, da guerra em si, e onde a paixão pelo cinema se desdobra em texto e subtexto. Há dois planos para eliminar os altos oficiais do nazismo que estarão assistindo a um filme lá, um envolvendo os Bastardos e outro planejado por Shosanna Dreyfus (Mélanie Laurent), a francesa judia que teve a família morta anos antes. O que a cúpula alemã foi ver? Um filme fictício chamado “Stolz der Nation”, o “orgulho da nação”, propaganda descarada em estética retumbante que narra as peripécias de um soldado alemão bom de tiro. O diretor e ator Eli Roth fez um curta em preto e branco, disponível nos extras do filme de Tarantino, ironizando uma ficção panfletária exagerada. Entretanto, almejando fazer uma metáfora que sai do filme dentro do filme, Tarantino apresenta sua versão cinematográfica do espetáculo que suspende os acontecimentos históricos dentro daquele ambiente. A guerra se encerra ali numa grande mentira como se estivesse usando o método de distorção artística apresentado por fascistas contra eles mesmos, mas é apenas uma ode à falsificação histórica. Esse tiro saiu pela culatra. Joseph Goebbels (Sylvester Groth), aliás, foi um grande publicitário.
Tanto preciosismo de Inglourious Basterds em detalhes de reconstituição, nas conversas tensas, na frieza dos interrogatórios de Landa etc., esbarram em um jogo metalinguístico equivocado. E, pouco tempo antes, acontece a longa cena dos espiões na taverna, bem trabalhada, fazendo um desfecho de tiroteio que deixa as coisas em aberto, diferente da prisão histórica que aquela sessão de cinema acaba se tornando. Momento decisivo em que a vulgaridade criativa cede espaço para a infantilidade do historiador amador e sensacionalista. Sátira edificante, Inglourious Basterds tem a influência de um subgênero italiano que havia no Exploitation Cinema, o Spaghetti Combat, mas fica sendo uma homenagem limitada, datada.
Essa espécie de redenção revisionista da história seria repetida, de maneira igualmente pomposa, em Django Unchained (2012) e Once Upon a Time...in Hollywood (2019), outros exemplares da decadência tarantinesca. É uma pena que Tarantino passou a usar seu grande talento e criatividade afunilando o desenvolvimento de seus filmes para expressar um desejo pueril de vingança moralizante. Se insistir nessa tendência, é capaz de o cineasta fazer um folhetim histórico sobre os atentados de 11 de setembro de 2001: os dois aviões fazem um pouso de emergência no Rio Hudson e os passageiros lincham os terroristas ao som de uma canção retrô bem animada; enquanto isso, no Oriente Médio, um agente imperialista descobre o esconderijo do ex-aliado Bin Laden e explode o saudita em mil pedaços. Ou talvez Tarantino esteja com a terapia em dia e não precise fazer esse filme para se sentir bem.
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Lista de historical feuilleton no subgênero political fiction:
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