por Paulo Ayres
Nicole Kidman num tríler que se passa no período em torno do Natal, no frio de Nova York, e cujo tema são contradições afetivo-sexuais no casamento e na sociedade. A descrição indica a obra-prima Eyes Wide Shut (1999), de Stanley Kubrick, mas também são elementos do filme recente da holandesa Halina Reijn, Babygirl. A enigmática Alice, do filme anterior, ganha o foco de uma jornada urbana? Talvez, em parte. O ponto é que Romy Mathis possui uma personalidade ambiciosa e um tanto vaidosa, moldando uma carreira de destaque profissional como executiva de alto escalão. Nesse ambiente laboral de colarinhos brancos se abre a via do caso extraconjugal. Um estagiário, Samuel (Harris Dickinson), cria um estágio de transição.
Antes de constatar a limitação da obra, é preciso comentar a organização criativa dos elementos no enredo. A dialética que ocorre na vida de Romy é interessante: trata-se de uma figura de liderança no ambiente de trabalho, que alcançou certo reconhecimento como mulher de negócios com certa reverência de empoderamento feminino, mas que, na sua intimidade, tem o costume de ver pornografia na internet. Os acontecimentos desse período dão vida a certas fantasias sexuais dela e, logo, aquela “mulher de pedra” (no sentido que é positivo para o mundo empresarial) estará caminhando de quatro, bebendo leite do pires como um pet, obedecendo um garoto mimado. Não se pode negar que Babygirl constrói um ambiente ótimo para aplicar o tema do jogo erótico de BDSM, com dominação e submissão.
O desenvolvimento do thriller of manners, no entanto, não se decide em qual tom encaminha os desdobramentos. Está certo que, como drama, é necessário dar ênfase no lado coexistente de sofrimento e sentimentos de dúvida, culpa e ciúme. E tal aspecto possui passagens ilustrativas. Junto com isso, por vezes, parece criar uma bolha piegas, com direito a uma canção de celebração, “Never Tear Us Apart” da banda australiana INXS, e a diminuição do clima estranho.
Romy é casada há dezenove anos com Jacob Mathis (Antonio Banderas), um diretor de teatro, e mãe de duas filhas. Um lar que, aparentemente, é bem progressista, mas, ainda assim, com certa insatisfação que a fachada estável da mulher esconde. Ou escondia. Um bom realce que Reijn traz é o desgaste emocional que aquilo está gerando em Romy, ao ponto que seu perfil profissional começa a ficar vulnerável entre os outros servidores da empresa. Quando o jogo erótico parece que está esfriando os ânimos, tanto da protagonista quanto da narrativa, Reijn introduz uma bela carta que estava na manga: tal como o novinho, a jovem Esme Smith (Sophie Wilde) também entra no jogo, mas de outra forma. Mais chantagens discretas nesse setor da classe servidora, mas dessa vez a exigência é quanto ao trabalho mesmo. A moça vê em Romy um ícone feminista e não quer ver alguém que ela admira num comportamento que considera um controle humilhante e inversão de hierarquia. Pena que essa virada com um nova "jogadora" não é mais desenvolvida pelo roteiro.
Depois de uma sequência vibrante e sugestiva da boate lotada na pista de dança, em mais um conjunto de enquadramentos bem feitos, Reijn coloca uma queda na piscina com ares de publicidade. Quem quiser ver um banho de água fria na história e no menino adestrador de cães, fique à vontade. Resta entender Babygirl comparando com o tríler criminal Unfaithful (2002), de Adryan Line, que também é sobre o adultério de uma mulher mais velha com um rapaz. Ambos filmes possuem certa semelhança conciliatória, embora tenha rumos diferentes. No drama protagonizado por Diane Lane, o marido mata o amante, num estado alcoolizado e talvez sem medir as consequências do golpe. No fim, o casal fortalece sua cumplicidade tanto no afeto familiar como na responsabilidade do crime. Em Babygirl, depois de uma troca de socos e um ataque de pânico, vem o perdão que a cultura contemporânea ridiculariza como próximo de “corno manso”. O estagiário vai embora e Romy responde firme e triunfante a insinuação de outro servidor tentando intimidá-la. O perigo passou. Ufa! Em casa, Jacob aprende a fazer a esposa atingir o orgasmo da maneira que ela aprendeu a gostar. O estágio no drama edificante foi de assistente de fortalecimento matrimonial.
= = == = =
Nenhum comentário:
Postar um comentário