sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

Drama traído

Unfaithful

(tríler,
USA, 2002),
de Adrian Lyne.
 


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por Eduardo Valente

A primeira hora do novo filme de Adrian Lyne vai enganar muita gente: será que ele finalmente cresceu e deixou de lado seu infantilismo mortal? É o que parece porque ele encena muito bem o início de um caso amoroso entre uma dedicada esposa e um jovem imigrante francês, em algumas cenas cheias de tesão e menos “frufrus” técnicos do que esperaríamos. No entanto, à medida em que o filme avança vamos, lamentavelmente, descobrindo o velho Lyne de sempre.

E mais, descobrimos que se aquela primeira hora nos deixa tomados pela trama é muito mais pelo trabalho excepcional de Diane Lane que, não feliz em conseguir dar a mistura perfeita de sensualidade e familiaridade a sua dona de casa quase quarentona, ainda interpreta com muitos nuances todas as mudanças de tom de sua personagem, indo da culpa à entrega total, do tesão inicial à paixão, do carinho ao cansaço com o seu marido. Mas se começamos a relembrar o filme a partir da metade vemos que, da parte de Lyne, já havia mesmo no início indícios de que o filme descambaria logo, logo.

O principal motivo pelo qual o filme não poderia dar certo é a total falta de química entre Lane e Richard Gere. Famoso como o Gigolô, o grande sedutor, ele está aqui num interessante trabalho de escalação de elenco pelo oposto, fazendo o marido traído e comum. Só que, talvez empolgado com a possibilidade, ele carrega demais nas tintas do seu “desinteressante” personagem, chegando às raias da incredulidade: o que aquele vulcão de mulher estaria fazendo com este personagem após 11 anos? Mas, pior do que uma simples questão de verossimilhança narrativa, há uma incompatibilidade completa: enquanto Lane interpreta um ser humano, Gere (e aí a culpa deve ir para Lyne antes de tudo) faz um personagem de cartum. Não há como juntar os dois no mesmo filme, quando eles contracenam parece que estão em dois filmes distintos. Se Lane é só ambiguidade e empatia, Gere torna seu personagem nulo. Sua virtude ferida é ridícula em todos os momentos, mas Lyne piora ainda mais quando mesmo no seu único ato de fato no filme, ele é “desculpabilizado” pela ingestão de álcool.

Nulo até certo ponto também acaba sendo o objeto de desejo da mulher, porque interpretado por Olivier Martinez como uma encarnação dos desejos femininos, porém sem qualquer traço de humanidade. Isso poderia ser interessante, mas é apenas óbvio. O caminho mais fácil não apenas para atingir o público, mas acima de tudo não criar um verdadeiro dilema entre aquelas duas vidas. Martinez é pouco mais do que um boneco inflável.

Mas o que realmente incomoda no filme é o histrionismo extremo da trama urdida por Lyne. Insatisfeito com simplesmente fazer um estudo de comportamento, de tabus, de personagens enfim (o que, com a ajuda completa de Lane, o filme parece conseguir no início), ele precisa se entregar a uma óbvia, desinteressante e boba trama de suspense. Temperada com o máximo possível de “golpes de roteiro” que criem situações absolutamente inverossímeis para fazer a trama avançar. A não ser, claro, que você acredite que na pequenina Nova York toda vez que você sair com seu amante vai esbarrar com alguém conhecido, que um elevador para de funcionar quando você carrega um cadáver nele, que um carro sofre uma colisão traseira justamente quando ali no porta-malas está o cadáver. Claro, são golpes velhos que quebram uma necessidade de verossimilhança, dirão alguns. Mas junto com a verossimilhança se vai qualquer verdade, e acima de tudo, qualquer seriedade do filme.

O objetivo com isso é claro: fugir dos questionamentos mais complicados pelo viés do subterfúgio. Quando você acha que os relacionamentos vão ser postos em cheque, e a moral tradicional balançar, nada como matar um personagem e envolver os outros no crime. Pronto, muda-se completamente o filme, que fica quase inofensivo (só não fica totalmente porque Lane continua lá, nos confundindo o tempo todo). Esta tática do “morde e assopra” é moeda corrente no cinema americano atual (vide In the Bedroom [2001]). Lyne tenta, inclusive, nos enganar com um suposto final indefinido, onde poderia argumentar que o julgamento moral final fica com o espectador. Mas é premissa falsa porque só poderia ficar em dúvida aquele que comprasse por um segundo a ideia de que a traição é justamente vingada com o assassinato de uma das partes. Ou seja, adultério é pior do que homicídio. Aqueles com um mínimo de bom senso, portanto, não possuem qualquer “julgamento moral” a fazer.

A não ser, talvez, de um diretor que ouse prometer tanto e nos dar tão pouco. Melhor ficar na cabeça com a imagem de Diane Lane dizendo para seu amante “Tomara que eu me canse de você”, absolutamente sofrida por saber que não deveria estar fazendo aquilo mas que não consegue controlar seu desejo. O tipo de fala que, na boca de uma atriz como ela, vale um filme, seja ele qual for e dirigido por quem for. Mesmo Lyne.

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