sábado, 6 de agosto de 2022

Fetiche da ilustração

Chelovek s
bulvara Kaputsinov 

(farsa,
USSR, 1987),
de Alla Surikova.


por Paulo Ayres

Como um dos pilares do desenvolvimento de Hollywood é a mitologia do Oeste Selvagem — geralmente no formato do gênero folhetinesco da horse opera —, é compreensível existir um filme como Chelovek s bulvara Kaputsinov ironizando fervorosamente toda uma tradição, que significa, no mais das vezes, uma legitimação histórica da barbárie fundante dos Estados Unidos no imaginário coletivo do público norte-americano e “americanista”. No entanto, a farsa dirigida pela cineasta Alla Surikova derruba, divertidamente, um totem colocando outro no lugar ao fetichizar o papel transformador da arte e da educação na sociedade.

A pequena cidade de faroeste Santa Carolina, no início do século XX, se torna o painel da alegoria. O gentleman Johnny First (Andrei Mironov) é um forasteiro ilustrado e pacifista, trazendo uma novidade civilizadora/humanizadora: a arte cinematográfica incipiente. O cotidiano é todo alterado. Os clichês e arquétipos do western se dissolvem frente à projeção da tela grande. Quando a farsa (colorida) observa outra farsa (preto-e-branca), o ambiente, relativamente, se desaliena e o decadente capitalismo no local, já numa época monopolista, encontra dificuldades de se sustentar. Deste modo, é somente com a chegada de um segundo forasteiro de nome retumbante, o Mr. Second, que há afirmação do cinema absorvido pela lógica mercantil, como business e como ecoador de preconceitos e valores obsoletos (incluindo o cristianismo imbricado com o espírito capitalista).

Num primeiro momento, o saloon serve como o retrato do individualismo degenerado. Surikova não só garante uma sucessão de gags criativas durante o quebra-pau, como também, gera um espaço que transmite claustrofobia e dispersão, contrastando quando a atenção é canalizada coletivamente para o palco ou a tela. O saloon se transforma na gênese de novos hábitos de convivência e de um novo ritual comunitário: um novo Salão Indiano do Grand Café, onde os Irmãos Lumière esboçaram, na França, o cinema (local de espetáculo) com o seu cinema (arte cinematográfica, criada por eles) — salão esse que ficava no Boulevard des Capucines, referenciado no título da sátira, “Bulvara Kaputsinov”. Os lençóis brancos, no filme soviético, simbolizam uma nova mediação, um presente que surge como um bastão passado por uma arte em contexto de decadência, a performance de cabaré, através de Ms. Diana Little (Aleksandra Yakovleva), a artista-prostituta que renasce como mocinha apaixonada. O artesão de caixões, por sua vez, volta a enxergar além da filosofia derrotista.

Por mais que estejamos numa farsa, o que permite uma flexibilidade enorme no jogo de metáforas que o enredo coloca, há uma falta de nuance sentida na representação do cinema como dualidade artística, entre a estética elevada e o entretenimento rebaixado e mercenário. Pior: a trama abre margem para uma interpretação didático-moralista da função da arte e do alcance da educação. Obviamente, no sermão da russa Surikova não há uma mensagem de exaltação aos valores tradicionalistas e elitistas; pelo contrário, fica do lado da inovação tecnológica, do progressismo e do poder popular. Contudo, sua fábula soa como um elogio democrata da “razão comunicativa”. Ou seja, Chelovek s bulvara Kaputsinov é romântico na forma e entorno (uma sátira edificante) e neoiluminista no conteúdo principal.

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[0] Primeiro tratamento: 06/05/2021.
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