quinta-feira, 22 de junho de 2023

Fonte realista

Scary Movie 
 
(farsa,
USA, 2000),
de Keenen Ivory Wayans.
 

 

por Paulo Ayres

O primeiro Scary Movie se diferencia dos demais filmes da franquia. Entre as referências, as farsas da série têm um ou dois objetos principais de paródia. As continuações são sátiras edificantes centradas em certas ficções edificantes. Curiosamente, o primeiro se sintoniza com o seu principal objeto de paródia: Scream (1996). O fato de haver realismo numa fonte não significa, necessariamente, uma transposição dessa característica para uma paródia, é claro, mas aqui isso acontece. Scary Movie, ademais, fez a farsa metalinguística voltar a ter repercussão após a fase de relativo apagamento da geração de Leslie Nielsen, na segunda metade da década de 1990.

Quem comanda essa empreitada é o diretor Keenen Ivory Wayans, que desenvolve Scary Movie como um projeto familiar, como é comum na sua filmografia — Marlon Wayans (Shorty Meeks) e Shawn Wayans (Ray Wilkins), corroteiristas e no elenco que interpreta a turma adolescente, são irmãos do cineasta —, porém, no conteúdo, há uma boa mensagem antifamilista. Os temas da sexualidade juvenil, por exemplo, estão num grau de abordagem mais intenso que a média das ficções massificadas; às vezes, até com direito a pênis, testículos ou esperma surgindo no quadro, como uma ameaça à espreita rondando os estudantes. Quem costuma concluir que uma farsa é necessariamente mais infantilizada que os demais gêneros ficcionais — tal como achar que Teen Titans Go! (2013–) é mais infantilizado que Teen Titans (2003–2006) — está confundindo representação moderada com o significado de maturidade.
 
Além de Scream, Scary Movie se estrutura no folhetim de mistério I Know What You Did Last Summer (1997). A síntese se serve bem dos clichês e tem como objeto de chacota o universo high school, seja o do reflexo artístico, que forma a tradição temática do teen movie, seja, de maneira mais indireta ainda, o da vida real. Como ilustração do primeiro nível de satirização está a morte da Miss Fellatio, Buffy Gilmore (Shannon Elizabeth), com o sarcasmo apontando diretamente os lugares-comuns nos filmes de assassino em série e sua característica construção do horror. No nível mais profundo de espelhamento da sociedade, percebe-se a representação corrosiva não só da escola, da polícia e da imprensa liberal, como também da família nuclear: o pai lúmpen de Cindy Campbell (Anna Faris) tem pouco tempo de tela, mas realiza alguns dos melhores diálogos com a filha. Wayans, aliás, reproduz de maneira fiel a ambientação que geralmente se encontra em entretenimento com essa temática. A metalinguagem de cada cena é salientada pelo contraste entre o prosaísmo e a absurdidade.

Resta, no entanto, poucas referências que não sejam das duas fontes principais. Indicações esparsas e residuais incluem Halloween (1978), The Sixth Sense (1999), The Blair Witch Project (1999), The Matrix (1999), Amistad (1997) e Scream II (1998) — o prólogo icônico do segundo Scream, dos homicídios na sessão de cinema, comparece aqui parodiado junto da tagarelice divertida de Brenda Meeks (Regina Hall). O diferencial é que o primeiro Scary Movie consegue uma trama condutora com um nível de solidez que não se encontrará nas várias continuações. Absorvida na reconstituição do material ironizado, essa farsa se concentra em manipular um objeto reconhecível e em recontá-lo dissolvendo pontes e explicitando contradições, até chegar a um final sem a costumeira parte conciliatória. É e não é sem razão que o assassino, na versão dessa sátira realista, seja Doofy Gilmore (Dave Sheridan), o oficial com deficiência mental. De ficção de mistério para ficção de golpe. Da superfície, que indica a imaturidade e a escatologia, surge a malandragem cool que ludibria todo mundo. Assim como Scary Movie se revela arrojado por trás de tanta besteira.

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[0] Primeiro tratamento: 23/09/2021.
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