domingo, 10 de setembro de 2023

Babá eletrônica

A Princesa Xuxa e os Trapalhões 

(farsa,
BRA, 1989),
de José Alvarenga Jr.


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por Marina Meliande
Contracampo/2003

Desde a década de setenta com O Trapalhão no Planalto dos Macacos [1976], os Trapalhões vêm flertando com a adaptação e o diálogo com o cinema hegemônico. A partir do final dos anos oitenta, começamos a ver também em seus filmes uma articulação direta com a televisão e alguns de seus principais astros de enorme sucesso dentre o grande público. Seus filmes começaram a estampar invariavelmente os rostos bonitos da vez, os grupos musicais de sucesso e, ainda, vários apresentadores de televisão (Gugu, Angélica, Xuxa...), um apelo direto ao público que começava a deixar de frequentar as salas de cinema, frente a concorrência da TV e a recessão econômica.

Ao longo de três décadas as temáticas do grupo são muito variadas, mas constantemente retomam as adaptações de filmes americanos de grande sucesso de público, principalmente o adolescente. É o caso de A Princesa Xuxa e os Trapalhões. Neste filme, de gênero ficção-científica-estelar, Xuxa (com atuação sofrível) é uma princesa ingênua que cresce enfurnada em um palácio, num daqueles tais planetas distantes. Ela é criada pelo assassino de seu pai, um ditador que toma o poder quando ela ainda é uma criança. Para ela, o mundo fora de seu castelo é perfeito. Sua “tomada de consciência” acontece através do contato com o Cavaleiro sem nome interpretado por Renato Aragão, que, por sua vez, lhe conta sobre a existência de campos de trabalhos escravos infantis, frutos do tal ditador. A partir daí, a princesa conhece o mundo lá fora, um mundo de catástrofes ambientais, prestes a se tornar totalmente desértico, e começa a traçar junto com os quatro trapalhões um plano para chegar ao poder e estabelecer um regime democrático.

É interessante que mesmo que lide com claras referências aos filmes de George Lucas, os Trapalhões raramente caem na mera paródia a este tipo de filme. O gênero é usado como ponto de partida para uma narrativa que incorpora o imaginário popular brasileiro (que também é televisivo) e que assim consegue um ótimo diálogo com o público infantojuvenil, utilizando elementos de linguagem já bastantes explorados e de fácil acesso ao cômico. De forma alguma este filme pode ser considerado uma cópia do gênero de ficção científica, pois se articula de forma inteligente e criativa com este.

O uso destes recursos não deve ser visto como uma escolha simplesmente econômica, uma receita de acesso fácil a altas cifras. A Princesa Xuxa e os Trapalhões é um filme que atualiza a participação do grupo de humoristas frente a um público que começa a ficar mais exigente e que passa a ter, a partir da década de oitenta, um tratamento diferenciado pela grande indústria. O adolescente, principalmente, passa a ser considerado um segmento alvo do mercado cinematográfico, com opções cada vez mais numerosas e diferenciadas a cada temporada.

De que forma podemos ver este filme com uma articulação criativa com uma cinematografia hegemônica? Não temos uma narrativa totalmente inédita mas temos alguns elementos externos a este gênero: é o caso de nossos heróis estarem todos de alguma forma à margem, excluídos social e politicamente. A origem humilde de Didi (e nordestina, apesar de estarem em um planeta distante) é sempre evidenciada assim como sua capacidade de sempre se dar bem, o “palhaço malandro” que utiliza recursos simples porém inteligentes para resolver problemas grandiosos (um personagem de nosso imaginário bastante recorrente no cinema brasileiro e recriado por Renato Aragão). A princesa Xuxa, símbolo do padrão de beleza europeu e da nobreza, acaba, inclusive, se apaixonando por Didi, “o cearense feio que fala errado”; o anti-herói. Uma inversão do que comumente vemos na TV e no cinema, quando o destino de “belos” e “feios” são sempre distintos. É uma espécie de premiação de final feliz para este personagem que, na filmografia do grupo, sempre tem uma compensação por seu grande ato de salvação. Os outros trapalhões estão também constantemente atualizando seus tipos cômicos sempre construídos em cima de personagens do imaginário brasileiro popular, porém raramente tem o mesmo destaque que o personagem de Didi. É comum a pouca distinção feita entre ator e personagem e a apropriação das experiências de vida de cada um dos quatro trapalhões em suas interpretações e constituições dos tipos.

Creio, assim, que este filme deve ser visto como uma forma pouco arriscada porém criativa de se fazer cinema no Brasil. Ele, assim como toda a filmografia dos Trapalhões, merece uma revisão atenta para pensarmos questões como a conquista de grande público e com isso o estabelecimento de fato de uma indústria cinematográfica, e para pensarmos também a relação de nossa cinematografia com o cinema hegemônico e a televisão.

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