quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Peso naturalista

Heli 

(tragédia,
MEX/NED/GER/FRA, 2013),
de Amat Escalante.



por Paulo Ayres

Heli já começa de forma chocante: uma sequência em que um corpo termina pendurado e enforcado, exposto para a via de automóveis que está abaixo. Deste modo, o recado se apresenta em dois níveis, pois, além de servir — dentro da trama — como recado do narcotráfico para mostrar o que acontece com quem atrapalha seu negócio, serve para o cineasta Amat Escalante revelar o tom traumático que conduzirá sua película. Nesse sentido, ele está indicando que só deve prosseguir quem quiser entrar nessa experiência desagradável e, infelizmente, o júri do Festival de Cannes prosseguiu, gostou e lhe deu o prêmio de Melhor Diretor naquele ano. Por mais que festivais de cinema, geralmente, sejam mais sofisticados que os prêmios mais comerciais (como Goya, Oscar e similares), eles mantêm uma tendência de se impressionar (positivamente) com algo que una denúncia social e choque estético. O  naturalismo de Heli, então, serve para enganar com o seu falso realismo.

No desenvolvimento da tragédia de Escalante, ficamos sabendo que o corpo do início é só o desfecho de um “show” de tortura apresentado para uma plateia infantojuvenil, que alterna o olhar entre o videogame e a brutalidade real — espancamento com raquete e pêlos pubianos incendiados com álcool. Está lá o painel de observação sociológica (no sentido de semiciência burguesa e superficial) encontrando o momento em que insinua o ponto de renovação e perpetuação do ciclo miserável e criminoso, com a imagem anestesiada da próxima geração de lúmpens do crime organizado. É um México bem verossímil até certo ponto. A lente de Escalante tem uma vontade interessante de adentrar a paisagem interiorana e o cotidiano pobre, mas faz isso incorporando exageradamente as vivências apresentadas como dados deste clima desértico. É por isso que a imagem que sintetiza bem esse drama naturalista é a da menina de 12 anos servindo como um haltere ou uma barra humana para o namorado, o jovem cadete do exército que, por sua vez, será a figura torturada e assassinada. Pessoas aqui são pesos. Se não pesos totalmente mortos, estão retratadas num grau de apatia tão grande que parecem mortos-vivos.

Estela (Andrea Vergara), a menininha, é irmã de Heli (Armando Espitia), o operário de uma fábrica de automóveis que protagoniza esse enredo sobre dois pacotes de cocaína e sequestro. Ele terá a sua vida humilde (e sua casa) virada de cabeça pra baixo ao entrar no caminho da guerra de drogas. Guerra essa que inclui uma polícia suspeita que alimenta esse ciclo. Um encontro de Heli com a policial no carro é irônico, mas a tragédia, em tom letárgico, faz do erotismo uma oferta estranha de amamentação simbólica. Não ultrapassa a camada de interações coisificadas. Até mesmo o que deveria ser um clímax humanista, Escalante reduz a impulsos de afirmação violenta de Heli e de reencontro orgânico com o corpo da esposa como objeto sexual. Enquanto isso, a pequena guria atônita simboliza, de fato, o que o filme oferece neste episódio de degradação naturalizante.

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