domingo, 11 de fevereiro de 2024

Material bélico

Small Soldiers 

(comédia,
USA, 1998),
de Joe Dante.
 

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por Carim Azeddine
Contracampo/2003

Pouco será dito aqui no que diz respeito à forma, por não haver muito a dizer. Dante segue a cartilha do cinema comercial americano clássico, mostrando ao mesmo tempo domínio da linguagem e nenhuma vontade de experimentar. Uma forma a serviço da eficiência narrativa e de uma compreensão universal no uso das figuras de linguagem convencionais. Se o chamado filme B já foi o palco de um embate entre classicismo padronizado e experimento (a sequência do assalto a banco em Gun Crazy [1950] de Joseph H. Lewis e que influenciou os futuros cineastas da Nouvelle Vague talvez seja um paradigma dessa liberdade de criação) este não é o caso de Small Soldiers. Dante é certamente um cineasta competente, como o devem ser aqueles que obram dentro do esquema dos grandes estúdios, e talvez o seja acima da média. O fato é que a questão da forma não lhe diz respeito. Tratemos então de analisar o filme sob outro ângulo, mais produtivo.

Pode-se encontrar em Small Soldiers alguns dos temas recorrentes na carreira de Dante: a violência militar (Piranha [1978], The Second Civil War [1997], feito para a TV), a tecnologia como porta de entrada ambígua para o fantástico (Innerspace [1987], Explorers [1985]), criaturas ameaçando aniquilar os homens (Piranha, Gremlins [1984]).

Nada de novo, muito pelo contrário. Cabe aqui lembrar que são temas abundantemente tratados no cinema americano. Dante parece buscar sistematicamente retrabalhar uma temática essencialmente americana, na sua diversidade: a questão do outro. Elemento fundador da mentalidade americana e que portanto não podia deixar de manifestar-se no cinema, sob a forma ameaçadora de ETs, de zumbis, de gremlins, de vietnamitas, ou seja lá o que for. O escritor Norman Mailer falava numa entrevista da necessidade vital do norte-americano de alimentar sua paranoia. No cinema, o outro como inimigo talvez encontre sua matriz na figura do Negro em The Birth of a Nation [1915], de Griffith.

Seja como for, Small Soldiers retoma claramente essa questão. O exército de falcons super-poderosos tem por missão exterminar os Gorgonitas, brinquedos vistos como um bando de 'anormais' e que concentram em si todos os sintomas da diferença. Diferença física: racial no caso do líder, estética ou genética no caso de outros, numa clara referência a Freaks [1932] de Tod Browning. Mas também diferença cultural: o pacifismo intrínseco dos Gorgonitas, que foram programados para perder, oposto ao belicismo vitorioso dos mini-GIs.

São claras as referências à própria história dos Estados Unidos e ao discurso que têm os americanos sobre si. Um discurso da normalidade e da eliminação sistemática do que poderia fugir a ela. Se o discurso militarista de Chip Hazard, líder do comando de elite, alude inicialmente ao belicismo contemporâneo e aos antecedentes da guerra do Vietnã, a caracterização de Archer, o líder dos Gorgonitas, como um pele-vermelha (a roupa, os adereços, as armas e até a cor da pele e a escolha do puma para o seu rosto), remete às raízes deste discurso e invocam toda a história dos Estados Unidos. Assim como invoca, de certa forma, a história do cinema americano, a melhor câmara de eco da representação dessa História.

Como em Innerspace, Dante desenvolve sua temática em dois planos. O embate entre normalidade e diferença repete-se na vida do herói adolescente do filme. Desajustado, incompreendido, tido como um marginal, o jovem Alan sente-se isolado e encontrará na defesa dos Gorgonitas o caminho para se afirmar e conquistar seu espaço e uma namorada. E é justamente na figura dos pais da futura namorada que Dante caracteriza a normalidade. Os pais de Christy são a representação caricatural de uma classe média branca alienada, para a qual destina-se justamente o discurso da normalidade.

Toda a ambivalência de Small Soldiers encontra-se aí, nessa crítica a um discurso. Num certo nível, o filme denuncia claramente uma visão militarista na qual o cumprimento de um objetivo (aniquilar o perigo Gorgonita) merece certos danos colaterais (a morte de alguns humanos e a destruição de um bairro inteiro), assim como denuncia o perigo de uma alienação que passa pela ingestão de imagens sem qualquer distanciamento (o pai de Christy e seu equipamento de vídeo). Difícil deixar de pensar no quem tem ocorrido de uns tempos para cá em certo país do Oriente-Médio, no discurso antiterrorista de Mr. Bush e no papel da mídia. Porém, num nível mais profundo, Small Soldiers não deixa de ser mais um filme a alimentar a paranoia americana, buscando desta vez o perigo no que está mais perto das nossas crianças: os brinquedos. Expoente da interminável série dos filmes de ameaça à humanidade (isto é, os norte-americanos) e crítica irônica ao belicismo de Washington, o filme de Joe Dante acaba servindo de válvula de escape. Crítica ferina porém inócua, uma vez que é, antes de mais nada, entertainment e dessa normalidade não deseja furtar-se. Mais uma peça da gigantesca máquina de fabricar consentimento, diria Noam Chomsky.

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