quinta-feira, 4 de abril de 2024

Cabeça longe

 Sunnyside

(farsa,
USA, 1919),
de Charlie Chaplin.


por Paulo Ayres

Numa cena de imaginação em Modern Times (1936), o personagem de Charlie Chaplin tem uma vaca em casa para pegar o leite no café da manhã. Algo semelhante já havia ocorrido em Sunnyside. Todavia, é uma cena de realidade para o cenário rural que é apresentado nessa sátira bagunçada.

Sunnyside é um filme estranho na filmografia de Chaplin. Para além das limitações típicas da época do cinema mudo, a farsa é como uma colcha de retalhos em que parece almejar mais uma determinada temática visual — Carlitos num ambiente campestre — do que desenvolver uma trama com uma linha identificável e coerente. Ironicamente, a sequência mais destacada é uma breve digressão onírica que não acrescenta nada para o fiapo de enredo: Chaplin sonha que está dançando com quatro ninfas — uma referência ao balé L'Après-midi d'un Faune (1912) do coreógrafo Vaslav Nijinsky. De volta à realidade, o protagonista vai continuar sua rotina de labuta. Apesar de o personagem ser conhecido como o Vagabundo, Sunnyside é um dos filmes em que ele trabalha e muito. Um tipo de faz-tudo do hotel de uma vila rural. Sobrecarregado pelo patrão rude (Tom Wilson), ele cuida até do gado.

Há, no entanto, quem faça outra leitura da obra. Seria um dos momentos mais ousados e sombrios da carreira, pois o pesadelo em que Chaplin busca o atropelamento não seria só um pesadelo. Mas isso é forçar o que foi apresentado. No caso, a ordem dos fatores altera o produto. Por mais que a sátira edificante tenha digressões sobre sonhos estranhos, a cena final bem açucarada está representando o que aconteceu de fato. Nesse sentido, diferente do rápido paraíso com as ninfas, o longo (para o contexto de curta-metragem) inferno somente evidencia um desvio subjetivo que indica insegurança afetiva. Diferente de Modern Times, o cotidiano de exploração laboral não se torna o foco. 

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