domingo, 21 de junho de 2020

Liberdade formal

15 Minutes 

(
tríler,
USA, 2001),
de John Herzfeld.


 
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por Eduardo Valente

Antes de mais nada, o filme: impressiona no 15 Minutes de John Herzfeld a capacidade de unir discurso e estética numa forma que lembra e ao mesmo tempo o coloca no espectro oposto do Planet of the Apes de Tim Burton. Onde ambos se aproximam é no “disfarce” do filme de ação, do grande filme hollywoodiano para perpetrar de fato obras de profundo alcance sociológico, de observação aguda e pessimista da sociedade americana, ano 2001 (e é essencial dizer que ambos surgem antes de 11 de setembro). No caso de Herzfeld é verdade que o comentário é mais direto, afinal o filme se passa na atualidade, em Nova York, e suas questões são colocadas sobre assuntos delineados por personagens de forma clara (bem diferente do filme de Burton, onde está tudo por trás dos atos, da superfície). No entanto, também é verdade que o formato clássico do policial tenta “escamotear” o discurso como a ficção científica fazia no filme de Burton. Outro ponto de contato está no domínio da linguagem, segundo a qual ambos os cineastas conseguem colocar seu discurso, mais do que na boca dos personagens, à flor da pele do espectador. Ou seja, todo o incômodo de um e de outro não vem de uma reação racional, a priori, mas de uma sensação profunda de mal estar criada pelo modo de filmar, de montar, de fazer cinema.

É claro que precisamos parar a análise conjunta aí, porque precisamos colocá-los em oposição completa no que se refere ao discurso em si. Porque se o filme de Burton é um alerta quanto ao caráter belicista do espírito americano, do potencial de autodestruição inerente a este, e um ensaio sobre o animalesco instinto violento e sua oposição ao conceito da diferença como convivência, o filme de Herzfeld infere justamente o contrário. Embora a leitura de que se trate de um filme xenófobo, pelo retrato dos dois personagens estrangeiros como assassinos insanos, seja de fato rasa. Isso porque ambos não são nunca apresentados como “maus” em si, mas apenas como personagens marcados por um fascínio pelo imaginário americano e prontos a utilizar as brechas de liberdade inerentes a este a seu favor. Se pensados na ótica posterior a um ataque de terroristas que aprenderam a pilotar aviões dentro dos EUA e que usaram como “armas” os aviões das maiores empresas americanas, o filme fica assustadoramente premonitório.

Porém, se não é xenófobo, o filme claramente advoga a retaliação, a tomada da justiça pelas próprias mãos, numa cena final sem qualquer meio-tom. E mais, embora o maior alvo de sua crítica sejam os próprios EUA, se refere especificamente ao “excesso de liberdades”, no discurso mais francamente conservador, que se coloca contra a mídia, contra o sistema legal, contra a leitura livre que um estrangeiro pode fazer do “paraíso das liberdades” que seria a América. Não mais, John, não mais... O que falta a Herzfeld é justamente perceber as contradições de seu discurso (o personagem de Robert DeNiro, por exemplo, se utiliza da mídia, mas é posteriormente tornado um herói como bom policial, mesmo que use os exatos mesmos meios dos assassinos; ao mesmo tempo em que o fascínio do público com a violência que o filme tanto denuncia é o mesmo que o torna atraente). Há ainda uma gradual perda dos tons de cinza que o início do filme apresenta, para poder contar com adesão completa do espectador. Assim que os assassinos que são mostrados como ingênuos, não-premeditados e emocionais no início logo se tornam verdadeiros gênios malvados do crime.

Mas, com todas estas mais do que graves oposições ao filme, o que não se pode perder de vista é a sinceridade do discurso (sim, sinceridade não é exclusividade da esquerda), onde o diretor defende com paixão e bom cinema aquilo em que acredita. Mesmo quem se distancia e vê com clareza o discurso do filme não consegue evitar de ser completamente tomado pela argumentação audiovisual vibrante de Herzfeld, que parte de inteligentíssimos usos da metalinguagem e das imagens em vídeo (é especialmente fantástico o momento em que um dos assassinos olha para o espectador e declara “Todo filme deve ter uma tragédia”), e da construção de sequências de ação brilhantes para atirar todos os seus argumentos do que “há de errado com a América”. Tanto melhor o cineasta que se coloca tão claramente, que faz com que inclusive aja espaço para que as vozes se levantem contra ele. O filme tem momentos de um épico, assumindo sua condição de “retrato de uma época”, quase expressionista na sua explosão de rancor, de raiva. Tão mais daninhos são os que escondem ideias tão piores quanto por trás de uma forma “neutra”, de um discurso “inocente”. Herzfeld não é desses. Filma o que pensa, e filma muito bem.

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