CAN/USA/FRA, 2005),
de George Romero.
= = =
por Filipe Furtado
Contracampo/2005
A arte de testemunhar o óbvio
No meio do cinema de horror, George Romero é uma lenda. Muito mais do que em relação a qualquer outro cineasta contemporâneo ligado ao gênero, existe um “mito Romero”, que não apenas embarca todo um subgênero, mas um sem número de homenagens, remakes e/ou paródias. Há uma imagem do que seria um filme de George Romero, imagem está que só foi amplificada nos anos em que o cineasta permaneceu quase inativo.
Se há algo que liga estes dois filmes é justamente a indústria de entretenimento de Fiddler’s Green (o misto de condomínio de luxo/fortaleza que serve de cenário para os dois Land of the Dead). Algumas das melhores cenas do filme são justamente as que mediam as duas tramas, em que vemos zumbis sendo usados como fonte de diversão. Romero as filma com um claro asco. Numa delas, em que uma prostituta é jogada numa jaula enquanto uma multidão faz apostas sobre qual dos dois zumbis lá dentro irá devorá-la, parece fazer referência direta aos filmes recentes que a obra do cineasta gerou. Zumbis nunca são brincadeira nos filmes de George Romero.
Uma das melhores passagens de Land of the Dead é um comercial de Fiddler’s Green: à primeira vista uma peça de sátira verhoeveniana, até que a ficha cai e o espectador se pergunta “porque diabos Fiddler’s Green precisa fazer um comercial, se ninguém mais vende o mesmo produto?” Bem, com concorrência ou sem, é preciso assegurar o consumidor que não há nada melhor que Fiddler’s Green. Satirizar publicidade é fácil, mas poucos cineastas seriam capazes de expandir esta sátira para este tipo de sacada. Para isso, é preciso um ponto de vista, que é exatamente o que diferencia Land of the Dead dos filmes dos imitadores do seu autor. Claro que a Universal gastou mais com a divulgação de Land of the Dead do que Romero realizando os três filmes anteriores, o que nos leva a um dos outros elementos que tornam o filme um objeto novo na filmografia do cineasta: se tratar do seu primeiro filme para um grande estúdio.
Se estamos num filme de compromisso, cabe ao cineasta explorá-lo, e não é a toa que Simon Baker interpreta um mercenário que tenta equilibrar como pode os interesses do patrão com aquilo que acredita. É o profissionalismo bem intencionado dele que impregna a mise-en-scène de Romero. Land of the Dead é o filme mais hawksiano do cineasta, um filme marcado por um profundo pragmatismo. Se em Dawn of the Dead estávamos diante de uma encenação marcada pelo carnavalesco, e em Day of the Dead, éramos apresentados à caverna ulmeriana, o tom aqui é, antes de mais nada, profissional. A beleza de Land of the Dead tem muito a ver com a forma como as imagens de Romero são precisas, como o filme simplesmente faz o serviço e passa para a sequência seguinte. Perde-se algo nessa conversão de Romero ao pragmatismo (conversão essa, que o cineasta claramente enxerga como única forma de realizar um filme relevante, que chegue aos espectadores no mundo cão do cinema americano contemporâneo), mas ganha-se algo também. John Ford é indiscutivelmente mais poético que Hawks, assim como Resnais é mais obviamente exuberante que Chabrol, mas uma cinefilia verdadeiramente plural aprende a abraçar todos eles, logo é preciso também aceitar Land of the Dead como o grande filme que é. Sua secura é parte da sua estratégia de ataque contra o próprio aparato que o sustenta. Seu grande ato de contrabando é justamente nos lembrar do óbvio que por vezes fica turvo no cinemão de gênero.
A radicalidade de Romero reside em testemunhar aquilo que até um zumbi deveria perceber ser inaceitável, mas que parece nos passar despercebido. O que há de mais perspicaz e critico na filosofia do cineasta desde meados dos anos 70 é seu reconhecimento de que o verdadeiro horror contemporâneo reside na forma como o encaramos como o estado natural das coisas. Todo o trabalho visual do cineasta, aqui, existe em função de nos apontar para além dos seus próprios fogos de artifício. George Romero é tanto o mercenário que tenta se equilibrar dentro das regras do jogo da indústria, quanto o líder revolucionário que vem lhe fazer uma visita para pôr fogo em tudo. E Land of the Dead é o grande faroeste crepuscular pós-apocaliptico que ele nos prometia desde 1968.
No meio do cinema de horror, George Romero é uma lenda. Muito mais do que em relação a qualquer outro cineasta contemporâneo ligado ao gênero, existe um “mito Romero”, que não apenas embarca todo um subgênero, mas um sem número de homenagens, remakes e/ou paródias. Há uma imagem do que seria um filme de George Romero, imagem está que só foi amplificada nos anos em que o cineasta permaneceu quase inativo.
À primeira vista, Land of the Dead parece se contentar em preencher adequadamente esta imagem, mas muita coisa mudou desde o Day of the Dead [1985] e o jogo aqui é bem mais complicado. Com o sucesso de filmes como 28 Days Later [2002], Resident Evil [2002] e Dawn of the Dead [2004], aquilo que o espectador vê como o “filme de zumbi” mudou, e a reação de Romero a isso é menos — como alguns de seus fãs querem — ter feito um filme “à moda antiga” (podemos dizer que, por uma série de razões, Land of the Dead é um filme híbrido), e sim um filme profundamente autoconsciente. Se nas duas sequências anteriores a Night of the Living Dead (1968) feitas por Romero já se partia do principio de tentar refletir sobre o primeiro filme e dar um sentido à praga dos zumbis que o cineasta, em sua estreia, não procurou estabelecer, aqui a autoconsciência é ainda mais ampla. Assim, se Night of the Living Dead é geralmente visto — de forma bastante discutível, vale dizer — como um filme sobre a família, Dawn of the Dead [1978] é um filme sobre consumismo, e Day of the Dead sobre o militarismo, este Land of the Dead se assume como um filme sobre a indústria do entretenimento, em que ele próprio está inserido. Se os inúmeros imitadores de Romero tornaram os zumbis vilões de filmes de ação algo banais (apesar do inegável talento de Dawn of the Dead), caberá ao cineasta restituir sua força política.
Land of the Dead logo se revela como dois filmes complementares. Naquele estrelado por Simon Baker, trata-se apenas marginalmente de um filme com zumbis: neste filme sobre humanos somos levados a um cenário de guerra, disputa de poder e desejo de liberdade onde a relação entre os três personagens centrais é calcada diretamente de To Have and Have Not [1944] de Hawks (não por coincidência um filme feito em época de guerra). No outro, estrelado por Eugene Clark, somos apresentados à revolta dos zumbis, completando o ciclo que Romero desde o segundo filme sugeria de forma mais forte: elevando-se o zumbi a verdadeiro herói positivo (vale apontar aqui que em todos os filmes anteriores o herói era feito por um ator negro, como Clark)
Se há algo que liga estes dois filmes é justamente a indústria de entretenimento de Fiddler’s Green (o misto de condomínio de luxo/fortaleza que serve de cenário para os dois Land of the Dead). Algumas das melhores cenas do filme são justamente as que mediam as duas tramas, em que vemos zumbis sendo usados como fonte de diversão. Romero as filma com um claro asco. Numa delas, em que uma prostituta é jogada numa jaula enquanto uma multidão faz apostas sobre qual dos dois zumbis lá dentro irá devorá-la, parece fazer referência direta aos filmes recentes que a obra do cineasta gerou. Zumbis nunca são brincadeira nos filmes de George Romero.
O cineasta nunca se encaixou bem nos critérios de cinema de gênero – com exceção de Monkey Shines (1988) ele nunca realizou um filme baseado num crescendo de sustos, por exemplo. Se há um horror nos filmes de George Romero, ele é de uma natureza bem mais contemplativa. A força dos ataques dos zumbis em seus filmes, sempre vieram muito mais de sua exuberância visual. Logo, não surpreende o olhar de desgosto sobre a transformação de zumbis em peças de montanhas-russas-autômatas imposto aqui. Mas Romero não é nenhum ingênuo, e sabe que tem uma responsabilidade sobre isso, que seus próprios filmes de certo são vistos por este prisma por muitos espectadores. O que diferencia Land of the Dead de outros similares é a facilidade com que Romero se insere nas próprias mídias que satiriza.
Uma das melhores passagens de Land of the Dead é um comercial de Fiddler’s Green: à primeira vista uma peça de sátira verhoeveniana, até que a ficha cai e o espectador se pergunta “porque diabos Fiddler’s Green precisa fazer um comercial, se ninguém mais vende o mesmo produto?” Bem, com concorrência ou sem, é preciso assegurar o consumidor que não há nada melhor que Fiddler’s Green. Satirizar publicidade é fácil, mas poucos cineastas seriam capazes de expandir esta sátira para este tipo de sacada. Para isso, é preciso um ponto de vista, que é exatamente o que diferencia Land of the Dead dos filmes dos imitadores do seu autor. Claro que a Universal gastou mais com a divulgação de Land of the Dead do que Romero realizando os três filmes anteriores, o que nos leva a um dos outros elementos que tornam o filme um objeto novo na filmografia do cineasta: se tratar do seu primeiro filme para um grande estúdio.
Há um inevitável elemento de compromisso envolvido nessa operação e diz muito sobre a grandeza de Romero que, ao invés de escondê-lo, ele o coloque em primeiro plano. Daí, muitas das escolhas de Romero como a dupla trama, a ambivalência sobre a indústria cultural, as citações explicitas aos seus outros filmes (o mito do cineasta era a principal peça de marketing) e mesmo muitas das opções formais. Land of the Dead é muito mais um filme de ação com elementos de horror do que os filmes anteriores, é também mais limpo em sua encenação e convencional no andamento da trama. De certa forma, portanto, George Romero está aqui flertando diretamente com o cinema comercial americano em 2005. Em outros tempos, uma personagem como a de Dennis Hopper receberia um fim bem mais visceral do que o que Romero lhe reserva aqui. Em troca, o cineasta ganha as vantagens de trabalhar com um orçamento mais folgado: a direção de arte tem uma riqueza maior que nos filmes anteriores, e desde Knightriders (1981), ele não contava com atores tão eficazes. A abertura do filme já é direta sobre o tom do filme: o logo da Universal dos anos 30 seguido por créditos que documentam a ascensão dos zumbis. O universo de Romero foi mitificado e absorvido pelas grandes corporações, mas algo na montagem já parece indicar que há rupturas onde o cineasta pode trabalhar.
Se estamos num filme de compromisso, cabe ao cineasta explorá-lo, e não é a toa que Simon Baker interpreta um mercenário que tenta equilibrar como pode os interesses do patrão com aquilo que acredita. É o profissionalismo bem intencionado dele que impregna a mise-en-scène de Romero. Land of the Dead é o filme mais hawksiano do cineasta, um filme marcado por um profundo pragmatismo. Se em Dawn of the Dead estávamos diante de uma encenação marcada pelo carnavalesco, e em Day of the Dead, éramos apresentados à caverna ulmeriana, o tom aqui é, antes de mais nada, profissional. A beleza de Land of the Dead tem muito a ver com a forma como as imagens de Romero são precisas, como o filme simplesmente faz o serviço e passa para a sequência seguinte. Perde-se algo nessa conversão de Romero ao pragmatismo (conversão essa, que o cineasta claramente enxerga como única forma de realizar um filme relevante, que chegue aos espectadores no mundo cão do cinema americano contemporâneo), mas ganha-se algo também. John Ford é indiscutivelmente mais poético que Hawks, assim como Resnais é mais obviamente exuberante que Chabrol, mas uma cinefilia verdadeiramente plural aprende a abraçar todos eles, logo é preciso também aceitar Land of the Dead como o grande filme que é. Sua secura é parte da sua estratégia de ataque contra o próprio aparato que o sustenta. Seu grande ato de contrabando é justamente nos lembrar do óbvio que por vezes fica turvo no cinemão de gênero.
A radicalidade de Romero reside em testemunhar aquilo que até um zumbi deveria perceber ser inaceitável, mas que parece nos passar despercebido. O que há de mais perspicaz e critico na filosofia do cineasta desde meados dos anos 70 é seu reconhecimento de que o verdadeiro horror contemporâneo reside na forma como o encaramos como o estado natural das coisas. Todo o trabalho visual do cineasta, aqui, existe em função de nos apontar para além dos seus próprios fogos de artifício. George Romero é tanto o mercenário que tenta se equilibrar dentro das regras do jogo da indústria, quanto o líder revolucionário que vem lhe fazer uma visita para pôr fogo em tudo. E Land of the Dead é o grande faroeste crepuscular pós-apocaliptico que ele nos prometia desde 1968.
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