domingo, 21 de julho de 2024

Grau de parentesco

Spy Kids

(farsa,
USA, 2001),
de Robert Rodriguez.



Jurassic Park III

 (folhetim,
USA, 2001),
 de Joe Johnston.


 
 
= = =
por Ruy Gardnier
Contracampo/2001

Dois filmes americanos de alta temporada, dois filmes para levar a família inteira ao cinema. Aparentemente, aí reside a única semelhança dos dois filmes. Mas não. Entre Spy Kids e a terceira edição da série dinossáurica Jurassic Park há uma semelhança de narrativa, uma semelhança fundamental, mesmo que inconsciente: os dois filmes são retratos da família americana, e mesmo disfarçando-se de aventuras, cheios de peripécias mirabolantes e efeitos especiais state-of-the-art, não deixam de revelar um indisfarçado desejo de dar conta do estado atual da instituição-célula da sociedade.

Em Spy Kids as coisas se revelam com mais facilidade. De fato, o relato desde o início nos conduz para essa interpretação: Antonio Banderas e Carla Gugino são ex-espiões de diferentes lados à época da Guerra Fria; casados e aposentados, são uma espécie de consultores de espionagem, o que dá a eles uma certa tranquilidade para criarem seus filhos como uma normal família de classe média. Só que a operação de um poderoso vilão fará com que os dois superespiões sejam sequestrados, e que seus filhos sejam os únicos a poderem salvá-los. Em Jurassic Park III, a coisa é mais velada. Aparentemente, trata-se apenas de um mcguffin o desaparecimento de um menino e a excursão da família para procurá-lo. Pois bem, de mcguffin não há nada, o percurso do filme e especialmente o final vão nos dizer com todas as letras.

O Jurassic Park III começa com um desastre: explorando turisticamente a ilha dos dinossauros, uma lancha, um instrutor e um menino acabam desaparecendo. Corta. Estamos na casa de Laura Dern, onde seu filho brinca com Sam Neill. Ao longo do filme, esse filho desempenhará um papel importante na trama, da mesma forma que a relação um tanto paterna de Sam Neill com seu melhor aluno e estagiário — há sempre uma relação de paternidade no filme. E mesmo para os dinossauros, há uma questão de família: os velociraptores que perseguem Neill e cia. porque eles roubaram seus ovos, o pterodáctilo que leva alimentos para os filhos, a mesma família de pterodáctilos que voa junta ao final do filme...

Mas a família mesmo do filme é a humana e completa, sem metáforas, representada por William Macy, Téa Leoni e seu mancebo. Sintomático, porque é definitivamente a família all-american: a esposa bela e de fartos dotes, a criança bonitinha, esperta, e acima de tudo o pai, uma espécie de Homer Simpson heroicizado. Não custa lembrar que William H. Macy é e sempre será o vilão idiotizado de Fargo [1996] (e de fato ele não é caracterizado muito diferentemente no filme: sua primeira aparição mostra um sujeito rico e meio babão que adora realizar gastos absurdos por turismo radical): um homem comum, sem grandes padrões morais. Em Jurassic Park III, contudo, apenas uma coisa muda: ele ama profundamente sua família, e isso parece ser suficiente ao filme, pois o desfecho da trama se dá justamente quando Macy realiza uma peripécia e arrisca a sua vida para salvar o filho. Mais tarde, juntos, eles vão filosofar, todos os três abraçados, sobre coesão familiar. Em nenhum momento, entretanto, o filme nos revela por que há amor familiar: uma família, mesmo que boçal, deve amar-se a si mesma e pronto.

Spy Kids, ao contrário, tem talvez apenas um mérito, mas esse mérito é grande: ele observa e analisa como surge o amor e o respeito aos pais nos olhos de uma criança. O filme começa com crianças problemáticas, que passam vergonha na escola ou simplesmente preferem matar aula. Elas veem nos pais figuras lamentáveis, tristes, caretas, pessoas despidas de qualquer interesse. E toda a graça do filme consistirá em fazer essas crianças, absolutamente idiotizadas por um convívio familiar banal, terem que assumir uma responsabilidade que implicará na descoberta da real identidade de seus pais, e no decorrente nascimento da admiração e na tomada de responsabilidade por parte dos moleques. O filme terminará com a família unida, sim, mas o espectador compreende a natureza do afeto. Há de fato um crescimento dos personagens, um problema que é resolvido.

Mas nem tudo funciona a contento. A opção em fazer um filme para crianças a fim de ter total controle do processo de produção fez bem a Robert Rodriguez, que não vinha conseguindo obter muito sucesso artístico com nenhum de seus filmes recentes. Se nesse ele chega perto de seu melhor (Desperado [1995]), usando-se, como sempre, de um maneirismo que funciona, isso não impede o filme de ter algumas soluções de roteiro fáceis demais (até para um filme infantil) e sobretudo a cenografia e a direção de arte, com umas cores aberrantes que nos remete diretamente ao kitsch de um Austin Powers [1997–2002], mas que acaba parecendo com um programa de TV de baixo orçamento. Claro, perto do orçamento de Jurassic Park III, Spy Kids é filme B. E, comparando todo trabalho criativo (roteirístico, direção, cenografia, etc.), o filme de Robert Rodriguez se sai inclusive melhor: de tudo que é feito, ele consegue criar um gosto (nem sempre bom). O filme de Joe Johnston, ao contrário, é absolutamente funcional: os dinossauros, as pontes que se quebram, todos os efeitos jamais são dispostos no filme para seduzir o espectador, mas somente para fazer a história progredir, como num fast food. E, como só poderia ser, o terceiro parque jurássico não cria mundo. Nenhum. O que não pode ser dito de Spy Kids, que não tem nada de um grande filme, mas já é alguma coisa.

= = =

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