quarta-feira, 24 de julho de 2024

Queda livre

Million Dollar Baby

(tragédia,
USA, 2004)
de Clint Eastwood.
 

por Paulo Ayres 

A característica mais destacável de Million Dollar Baby é seu trabalho visual com a iluminação e a escuridão, gerando diversas tonalidades de sombreamento, diferenciando não apenas uma cena da outra, mas também indicando em imagem como os corpos moventes entram e saem das penumbras cotidianamente. Isso cai como uma luva na dimensão metafórica, criando a ilustração pertinente de histórias de vidas em conexões e contradições e, ainda mais, quando o foco está numa determinada carreira do boxe que experimenta o holofote do estrelato e uma queda brusca que a encerra. A ascensão profissional de Maggie Fitzgerald (Hilary Swank) é construída por Clint Eastwood salientando o esforço, o comprometimento, as dificuldades, mas não como um fim triunfante de mensagem motivacional — como é comum ocorrer em filmes sobre competição esportiva —, mas como amostra de intensas variações de uma mesma trajetória singular e, no caso, de uma “derrota” individual extrema. Million Dollar Baby, na reta final, se apresenta como uma tragédia de hospital, sobre uma mulher tetraplégica, colocando no centro de sua lente a questão da eutanásia. É um direito de escolha que deve ser garantido pela lei? Dúvida que assombra Frankie Dunn, que é Eastwood atuando mais uma vez em um filme seu. Seus dilemas, no entanto, se dão mais nos âmbitos ético e religioso, como indicam as conversas com o Padre Horvak (Brían F. O'Byrne).

Million Dollar Baby é um caso de drama edificante sem final feliz em sentido estrito, mas que recorre ao sacrifício redentor. E, apesar de também ter uma bela direção de fotografia de Tom Stern destacando as sombras, não é um filme sobre fantasmas como Hereafter (2010), mas possui espíritos malignos rondando a trama. Alguns deles são exorcizados, mas o principal gera um estrago irreversível. Trocando em miúdos, Million Dollar Baby é um drama com maniqueísmo.

Há, pelo menos, três antagonismos em tom antidialético e com pesos diferentes que enrijecem o desenvolvimento do enredo. Curiosamente, são momentos que poderiam ser cortados ou atenuados por um olhar mais flexível, pois não comprometem a trajetória retratada e as questões que ela traz como pontos de conteúdo reflexivo. São cenas com certo impacto, feitas mecanicamente como dobradiças, rituais de passagem, gerando um contorno caricatural que, como dobras narrativas, cristalizam uma divisão dualista, uma fluência com tropeços em momentos-chave. Coisas do roteiro de Paul Haggis, que, no seu outro drama premiado e que assumiu a direção, Crash (2004), buscou ir além desse caráter binário, mas, acabou reforçando-o de outra maneira, multiplicando as passagens com conversões moralizantes. Em Million Dollar Baby há os matizes da direção madura e precisa de Eastwood, mas ela, por mais que proporcione nuances dramáticas, não altera certas cenas que foram descritas de forma rígida no papel.

Além dos três momentos mencionados, há um bem discreto, quase imperceptível, em que Maggie descarta a proposta de um novo empresário numa lanchonete. Algo que até pode ser desconsiderado como equívoco, mas serve para observar o tipo de sermão que aumenta gradativamente posteriormente. Uma dessas sequências ocorre com o plot paralelo. Scrap-Iron (Morgan Freeman), treinador assistente do ginásio e amigo de Frankie, dá um golpe num jovem que ridicularizava e bateu em Danger (Jay Baruchel), um aspirante ingênuo que servia à narrativa como alívio cômico. Subtrama bem ao estilo rebaixado da série cinematográfica Rocky (1976–), que inclui o spin-off protagonizado por Adonis Creed. Um maniqueísmo de grau mediano está no retrato da família original e sanguínea de Maggie. Quando a pugilista compra uma casa para a mãe e ocorre certo desdém dos familiares, num clima distanciado, pôde ser entendido como uma contradição familiar bem espelhada, mas essa família retorna “turisticamente” na última parte da tragédia, na visita hospitalar, reforçando o aspecto de frieza e mau-caratismo. Manobra desnecessária para comparar negativamente com a nova e breve família que Maggie formou em laços laborais e afetivos. Por fim, há o ponto de virada na luta que terminou de maneira fatídica. Eastwood alterna para a proposta sensacionalista que inflama a encenação tragediesca, utilizando até a câmera lenta em um instante de contemplação penosa. Maggie não enfrentou qualquer boxeadora, mas a temível Billie Osterman (Lucia Rijker), um demônio dos ringues conhecido como Blue Bear. O enxofre moral da alemã negra está exposto nessa passagem bem iluminada, sem nenhum contraste de iluminação literal ou metafórica.

Todavia, como foi dito, são passagens graves que comprometem a totalidade da obra, mas não anulam a qualidade daquilo que é mostrado entre esses espaços. Eastwood filma de forma contundente, demonstrando o domínio audiovisual que sua experiência lhe proporcionou. É um material forte, mas a narração em off de Morgan Freeman está ali, acompanhando tudo, colocando todos os pingos nos is, sobre as técnicas do boxe, a performance de Maggie, os conflitos familiares e tudo mais. Nesse sentido, Million Dollar Baby tem “golpes” certeiros enquanto reflexo estético, mas também uma proteção didática que amortece o conteúdo. Aliás, lembra em certa medida o próprio Freeman como ator coadjuvante e narrando outro drama edificante: The Shawshank Redemption (1994) de Frank Darabont.

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