sábado, 15 de outubro de 2022

Dores do parto

Gloria mundi 

(tragédia,
FRA/ITA, 2019),
de Robert Guédiguian.


= = =
por Maria do Rosário Caetano
Revista de Cinema/2021

O cineasta francês, de origem armênia, Robert Guédiguian abre Gloria mundi – estreia dessa quinta-feira, 25 de fevereiro, nos cinemas – com cena de parto que homenageia um dos filmes de seu “conterrâneo”, Artavazd Peleshian. O documentarista armênio, de 82 anos, desenvolveu sua poderosa e concentrada produção (apenas sete curtas ou médias-metragens) na União Soviética. Formou-se na VGIK (Escola Pan-Russa de Cinematografia) e tornou-se autor muito estimado por seus pares (inclusive por Jean-Luc Godard).

Guédiguian escolheu, para abrir Gloria mundi (“Sic transit gloria mundi – toda a glória do mundo é passageira”), a exposição – sem nenhum apelo sensacionalista – de um parto real. Uma criança do sexo feminino nasce. Ela se chamará Glória. É filha da jovem Mathilda (Anaïs Demoustier) e neta de Sylvie (Ariane Ascaride) e de dois avôs, Robert (Jean-Pierre Darrousin) e Daniel (Gérard Meylan). O pai da recém-nascida, Nicolas (Robinson Stévenin) está feliz com a chegada do bebê, mas, desempregado, espera a hora de assumir a função de motorista do Uber.

Guédiguian só explicitará a homenagem a Peleshian nos créditos finais de seu vigésimo-segundo longa-metragem. Quem assistiu aos filmes do diretor soviético-armênio (ele foi homenageado, presencialmente, pela Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 1994) sabe que Pelechian construiu, em Kyanq [1993], uma ode ao nascimento. No rosto de uma parturiente, vemos as terríveis dores do ato de parir, mas também a alegria de gerar uma nova vida.

Gloria mundi tem a cidade de Marselha, espaço territorial dos melhores filmes de Guédiguian, como um “personagem”. Nela, vive a família da pequenina Glória, gente que se dedica a modestos ofícios. Sylvie é faxineira, Robert é motorista de ônibus, mamãe Mathilda trabalha, contrariada, como balconista em loja de roupas. Como motorista do Uber, o honesto Nicolas enfrentará grave problema.

Quem parece se dar bem é a fogosa e ambiciosa Aurore (Lola Naymark), irmã de Mathilda, casada com o também ambicioso e descolado Bruno (Grégoire Leprince). Juntos, os dois exploram loja que compra, a preços baixíssimos, uma gama infinita de pequenos eletrodomésticos para, depois de uma “garibada”, revendê-los com significativos lucros.

O filme, que participou do Festival de Veneza, em 2019, e premiou Ariane Ascaride com a Copa Volpi de melhor atriz, constrói-se como um melodrama banhado em atmosfera polar (como os franceses chamam o filme policial).

A ligação da família com o mundo do crime está – como o parto de Glória – nas sequências iniciais do filme. Daniel (o que seria de Guédiguian sem a trinca Gérard Meylan-Ascaride-Darroussin?) entra em cena ao abandonar a prisão, onde passou vinte longos anos, por assassinato. Ele é o avô de sangue de Glória. A filha Mathilda, porém, prefere Richard, o segundo marido de sua mãe, que a criou desde pequenina. Não quer saber do pai e de seu passado criminoso.

Um roteiro muito bem articulado revelará a Marselha dos que vivem em busca de dinheiro para a sobrevivência. E, também, aqueles, caso dos motoristas de táxi revoltados com a chegada do Uber, e dos ambiciosos que usam o comércio para ascender socialmente. Os dramas familiares se desdobrarão de forma convincente, numa mistura de ternura e sordidez. Há até triângulo amoroso que parece saído da imaginação de Nelson Rodrigues. Sem esquecer um pungente testemunho de Sylvie, que relembra o que se passou quando Daniel foi preso e ela, grávida e desempregada, teve que se virar (mais um momento de tom rodriguiano).

Ascaride, Darroussin e Meylan, parceiros de Guédiguian em tantos filmes, dão o discreto show costumeiro (impossível não se comover com o pequeno solo de Darroussin, quando Richard é multado pelos guardas de trânsito, pois conduzia o ônibus e, ao mesmo tempo, entabulava longa conversa ao celular). O elenco jovem também se sai bem. Ninguém parece uma estrela de cinema em ação nos filmes do marselhês-armênio. Ele nunca escondeu sua preferência por atores com cara de gente comum, dessas que encontramos em ruas de muitos e apressados pedestres.

O diálogo com o cinema documental é um dos esteios do cinema de Guédiguian. Filmes que o projetaram, como o excelente La ville est tranquille [2000] ou o tocante Les neiges du Kilimandjaro [2011], que o digam. Suas narrativas constroem-se como dramas realistas, enriquecidos ao dialogar com outros gêneros, em especial o polar (Lady Jane [2008]).

Se Guédiguian a todos encantou com a beleza solar e o humor esperançoso de La villa (2017) e a outros tantos decepcionou com o fantasioso Au fil d'Ariane (2014), há que se dizer que Gloria mundi é sua volta segura ao mundo das pequenas transgressões cotidianas e das muitas dores (e alegrias) dos que vivem em família.

Não se trata de uma obra-prima. Daí, causar certo espanto a consagração da crítica francesa (até a Cahiers du Cinéma brindou este ‘melodrama-polar’ com cinco estrelas). Mas é inegável que Gloria mundi integra a lista dos melhores momentos de Guédiguian-Ascaride-Darroussin-Meylan. O quarteto apresenta-se, passados tantos anos de trabalho conjunto, em grande forma.

E quem se entusiasma com os ingredientes políticos que costumam aparecer, sem nenhum panfletarismo, nas narrativas do marselhês, verá o assunto novamente em pauta. A faxineira Sylvie entrará, no hospital que a emprega, em conflito com trabalhadores-grevistas, liderados por um afro-francês (Djouc Koma). Os tempos são outros. Sindicatos aglutinadores parecem coisa do passado.

= = =

Nenhum comentário:

Postar um comentário