sábado, 28 de janeiro de 2023

Reino latifundiário

Cinderelo Trapalhão 
 
(farsa,
BRA, 1979),
de Adriano Stuart.
 

 

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por Felipe Bragança
Contracampo/2002

Os primeiros 15 minutos desse Cinderelo Trapalhão impressionam: a quase ausência de diálogos, as longas sequências de acrobacia, o jogo de expressões faciais, são uma das passagens mais marcadamente circenses do cinema brasileiro. Um narrador com ares de intertexto narrativo é a única referência direta de trama, intercalado a esquetes de perseguição e a primeira de uma série de cenas memoráveis: um show de touradas, onde Cinderelo (Didi) “fila” um lanche dos outros espectadores. A liberdade do improviso e da expressividade mímica de Didi ganham nessa cena um pequeno momento de eternidade.

Diretamente baseado no conto de fadas, o filme conta a história de um vagabundo que vive junto com três nobres cavaleiros (Dedé, Mussum e Zacarias), mas que descobre coragem ao ajudar uma família de fazendeiros ameaçados por um poderoso coronel. Longe da alegoria, o filme é uma fábula assumida, que brinca com seu aspecto fantasioso ao criticar o poder feudal dos grandes fazendeiros.

A narração nos lembra que se trata de um reino distante, “longe daqui”, uma forma jocosa de driblar os olhares da censura, mas também uma maneira de tratar da ganância por poder, sem perder a doçura, marca de seus protagonistas. Ainda que heróis, os Trapalhões aqui não são exemplos de bondade, não representam ídolos: são malandros, palhaços, por vezes covardes e sensatos, por vezes estúpidos.

Cinderelo é a síntese de um heroísmo que não se calca numa consciência julgadora mas num gesto de afetividade — que quase não percebe o perigo que corre, que não vê os limites do bom senso. Assim, funcionando entre a esperteza de pequenos truques e as trapalhadas que quase colocam tudo a perder, Cinderelo não tem utopias nem medo, age como que por prazer, brinca, debocha de si mesmo. Se compara à Cinderela original, brinca ter uma fada madrinha... mas não tem nada além de Gumercindo, um bode.

Dedé é o cavaleiro orgulhoso de seu suposto heroísmo — vive em troca de favores e de sua valentia, acompanhado por Mussum e Zacarias — é figura do herói estandardizado, que treme ao pensar um enfrentamento com o coronel mas aceita lutar em troca de terras, como um justiceiro de western.

Os esquetes do treinamento de Cinderelo junto aos capangas do coronel são pequenos espetáculos de mímica, atrações de acrobacia que parecem se descolar da narrativa e se entregar unicamente ao humor concreto dos picadeiros — familiar também ao diretor Adriano Stuart. São cenas em que, como na sequência em que Didi finge ajudar os capangas a destruir a casa dos pequenos fazendeiros, o humor do improviso, das gags, ganha ainda mais espaço.

Perfeita, aliás, é essa sequência ao conseguir trabalhar dois tons de paródia numa mesma imagem: os capangas do coronel nos remetem aos índios/mal-feitores da estrutura do western, e Didi, por dentro da cena, brinca com seus gritos e seus gestos de maldade, fingindo participar do quebra-quebra. Outra pérola.

O pastelão assumido da trilha sonora, da cena do casamento (inclusive com a presença das tortas na cara) ou do pé gigantesco que Cinderelo finge ter para evitar colocar a bota que o incriminaria, fazem de Cinderelo Trapalhão um dos melhores momentos do quarteto — conjugando o improviso dos gestos e falas à precisão de suas acrobacias. A brincadeira livre ao encaminhamento narrativo. Didi encarna perfeitamente o herói dúbio: impetuoso e tímido, habilidoso e atrapalhado, contido e incontrolável (como quando, num pequeno surto de raiva, começa a destroçar o carro do coronel ou derrama todo o sonífero no ponche da festa).

O final feliz conquistado é coroado com a antológica imagem do petróleo jorrando do pequeno terreno (quase uma quitinete) que cabe como recompensa a Cinderelo e a seu bode. Essa dádiva mágica inevitável (que vem justamente àquele que mais fez e menos pediu em troca) marca o tom desse pequeno conto moral sobre a humildade e o heroísmo. Sem fada madrinha, sem pedidos ou vara de condão, mas ainda um conto de fadas.

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