terça-feira, 24 de janeiro de 2023

Presença de palco

Cazuza:
O Tempo Não Para

(dramédia,
BRA, 2004),
de Sandra Werneck 
e Walter Carvalho.


 
= = =
por Luiz Carlos Oliveira Jr.
Contracampo/2004

Nos seus dois filmes anteriores (Pequeno Dicionário Amoroso [1997] e Amores Possíveis [2001]), Sandra Werneck deixou clara a proposta de inventariar tipos e costumes de um imaginário caro à Zona Sul carioca. Pequeno Dicionário Amoroso é um título que revela essa proposta abertamente: sua atração pelos hábitos e pelos cartões postais do Rio brinca com a condição de guia turístico-afetivo da cidade. Em Cazuza: O Tempo Não Para, ela leva mais a fundo a parceria com Walter Carvalho — grande nome da fotografia do cinema brasileiro atual que retorna agora a um trabalho de direção depois de assinar, em 2002, a coautoria do (insosso) documentário ensaístico Janela da Alma. Mesmo se a contribuição dele em Cazuza: O Tempo Não Para tivesse sido “somente” a fotografia, a sua inclusão como codiretor já seria plenamente justificável: a aproximação que o filme constrói em relação às cores e às texturas que acompanharam a iconografia do cantor é primorosa. Mas é perceptível como a contribuição de Carvalho vai além disso, repercutindo fortemente na mise en scène. Difícil imaginar, por exemplo, aquelas longas sequências com câmera na mão e enquadramento fechado num filme só de Sandra Werneck, para quem a expansão dessa parceria já rendeu, no mínimo, alguns belos efeitos-cinema para além da encenação de frases de roteiro, num filme em que os bons momentos brigam por oxigênio em meio a muitos despropósitos.

Pelo lado da proximidade da diretora com o imaginário da Zona Sul carioca, faz sentido que ela se envolva com a cinebiografia de um de seus ícones maiores. A tirar pelo recorte e pelo tom com que tratara essa cultura nos outros filmes, contudo, era de se recear como poderia o Cazuza ser inserido nesse meio asséptico e comodista, de amores tão possíveis quanto programáticos. Em outro nível de indagação, o filme “censura livre” de Cazuza soava estranho desde os primeiros rumores de sua feitura. Basta a primeira imagem, no entanto, para percebermos que o filme não busca apenas uma adequação, não é a chegada de um novo personagem ao mesmo projeto de cinema: é algo em grande parte novo para Werneck. A grua (símbolo de suntuosidade e opulência no cinema, e aqui usada em sentido oposto) que desce do letreiro e invade o Circo Voador, para mostrar Cazuza apresentando um número musical, muito antes do Barão Vermelho e de todo o frenesi em torno de sua imagem, oferece desde o início a granulação e o despojamento que a câmera registrará em muitas passagens ao longo do filme — rodado em super-16 e ampliado para 35 mm justamente com esse fim (além do grão, há as cores saturadas que remetem a filmes como o próprio Bete Balanço [1984]).

Os méritos de Cazuza: O Tempo Não Para estão quase que invariavelmente relacionados aos momentos em que ele é só presenciação, algo próximo do que os músicos chamam de “presença de palco”, e que o Cazuza tinha de sobra. São os momentos em que tudo que interessa ao filme está no ator Daniel de Oliveira — cuja entrega é realmente admirável —, na ambiência (figura sumida no cinema nacional, e que reaparece em belas cenas desse filme) e na câmera, o encontro dos três elementos resultando num processo simples e pulsante. Longe de querer aqui afirmar um discurso, datado e superado dentro do próprio seio dos cinemas modernos dos anos 60, da possibilidade de uma presenciação que sobrepuje a encenação — mas as passagens mais assumidamente encenadas do filme, em que o roteiro praticamente aparece escrito na tela (de tão visíveis que são suas resoluções), ficam como indiscutíveis pontos fracos. Walter Carvalho levou alguma coisa de seu trabalho em Madame Satã [2002], filmaço de Karim Ainouz, para Cazuza: O Tempo Não Para, o que pode explicar o sucesso da construção de atmosferas locais (independentemente do Posto 9, dos bares ou do próprio Circo Voador estarem parecidos ou não com seus “originais”, o que importa é que possuem regimes particulares de espacialidade e luminosidade dentro do filme). O que Madame Satã fez com a Lapa dos anos 30, Cazuza: O Tempo Não Para buscou fazer parecido com a Zona Sul do Rio da década de 80. A cena do namorado do Cazuza procurando por ele numa boate gay, em plano-sequência com a câmera o acompanhando fechada na sua nuca, dando uma visibilidade confusa, é bastante sintomática: ao partir de uma concepção abstrata do espaço, a cena adquiriu uma atmosfera densa e ambígua, além de uma tensão dramática que nenhuma das outras cenas repletas de diálogos consegue atingir.

Cazuza: O Tempo Não Para é um filme construído em plano fechado nas externas muito menos por demandas práticas de produção (se abrir o enquadramento, mostra um espaço repleto de signos contemporâneos que não condiz com a diegese) do que por ter como proposta estética/temática partir do personagem-título em direção ao resto do mundo, elaborar o entorno utilizando o artista retratado como pivô — e esse filme e o de Ainouz falam de pessoas que, cada uma a seu modo e em suas circunstâncias distintas, escolheram um local de auto-enunciação (seja como hedonismo, irreverência, resistência ou performance) e fizeram desse local o princípio e o fim de toda forma de vida que lhes era própria. Como é mostrado numa cena em que Cazuza acende e apaga um fósforo apanhado a esmo, aquela chama trêmula, aquela intensidade fugaz é dele e de mais ninguém.

Mas lá onde Ainouz preferiu um recorte singular e concentrou seu filme numa passagem breve, aparentemente tomada ao acaso na vida de seu personagem, Werneck/Carvalho optaram pelo contrário, ou seja, um período longo na vida de Cazuza, acompanhando-o desde o começo do Barão Vermelho até perto da morte. Nisso recai uma indecisão do filme entre resolver os diversos percalços de seu personagem (comprimido demais num roteiro relativamente pequeno) ou se concentrar nele em dados momentos, naquela atitude daquele dia qualquer, naquela imagem em particular que poderia oferecer tudo de que o filme necessitava. É um recorte ambíguo, que não se resolve entre a aparência/momentaneidade ou o biográfico/panorâmico, clássica e psicologicamente composto. Tudo se acavala ao longo do filme: o sucesso, a cisão com o Barão Vermelho, a relação com os pais e com os amigos, a doença. A passagem de tempo e a “mensagem” do filme se confundem: apesar do tempo passar rapidamente e impedir que se meça a distância exata entre a fase saudável e a doença, a descoberta do HIV é o middle-point do filme e o divide claramente entre uma parte de transborde de vida e outra de degeneração progressiva. Embora ele continue saindo para beber e curtir após voltar do hospital de Boston (ou seja, embora haja vida continuando) não deixa de ter um quê de necrofilia nessa história, como se o intuito fosse resgatar o morto tanto para um último abraço dos amigos, parentes e fãs quanto para torná-lo objeto de admiração de uma geração (a juventude/adolescência atual) que não teve tempo de conhecê-lo. O elogio da vida, sublinhado pela narração em off que acompanha a última cena do filme, às vezes se perde entre os arbustos sombrios plantados pela sua segunda metade.

O filme, de um modo geral, é prejudicado por seu foco paradoxalmente múltiplo; “desperdiça seu mel” em situações mil quando, no fundo, tudo que parece desejar é dizer qual a impressão que tem sobre uma pessoa ímpar e sua filosofia de vida, que volta e meia é tomada como emblema de uma geração. Talvez fruto de uma má-configuração generalizada — que não abraça nem o impulso voyeurista de acompanhar Cazuza na libertinagem das festas e dos porres nem o desejo crítico de mostrar a formação do músico —, o filme traz também um sentimentalismo que funciona algumas vezes (o beijo de Cazuza no rosto de Frejat, no meio de um show, aceitando o pedido de desculpas pela agressão no camarim; o abraço no pai, já na doença), mas desaba em tantas outras (a relação com a mãe, ponto nodal da narrativa, oscila entre o melodrama e a sinceridade do relato materno, mas parece emperrada, encabulada com algo). Um aspecto evidente em Cazuza: O Tempo Não Para é a incapacidade de, à proximidade extrema com um indivíduo, conciliar o atravessamento da situação exterior a ele, e que de certa forma é também o que o constitui (no que a “entrada da política” no filme através do rádio, da televisão e do jornal, sempre acompanhados de comentários óbvios, se mostram soluções muito pobres). Como atesta a obra-prima Dah [2002], de Kiarostami, fazer um filme que seja fechado na cara de um personagem, e que ainda assim seja um filme sobre o mundo, é mais do que possível — operação que envolve um grande risco, sem dúvida, mas talvez seja esse risco o que separa os cineastas relevantes dos demais.

Sobre o possível retrato de geração e todos os comentários a respeito do momento político por que atravessava o Brasil, o filme não ultrapassa em muito o clichê, a visão estereotipada dos anos 80 (década perdida, “alienação consciente”, euforia que dribla o tédio e o imobilismo). Se o filme acredita nessa visão mas ainda assim não se furta à nostalgia (no que a letra de “Ideologia” fornece a melhor chave de entendimento), o grande problema é o distanciamento excessivo: ao ver um filme do início dos anos 80, ou mesmo final dos 70 (como os de Antônio Calmon que passam de madrugada no Canal Brasil) estão lá todas aquelas coisas (o ritual da maconha, a comunicação por gírias, o estereótipo do vagabundo-Zona Sul, a mulher doidinha), mas nada é forçado, reiterado: tudo acontece porque estava acontecendo. Vale acrescentar que foi justamente a partir de negligenciar boa parte do que se fez no cinema anos 80 que mais recentemente se criaram jargões críticos como “estética publicitária”, “linguagem MTV” e afins, rótulos que ignoram até que ponto não foi o cinema quem determinou os padrões visuais da publicidade e do videoclipe ou vice-versa.

Esses receios de uma parte da crítica são pruridos de um antigo discurso que tende a enxergar na televisão e em outros formatos (jogos eletrônicos, por exemplo) meios de expressão menos importantes, menos nobres, ou também um discurso que (ainda!) resvala no assunto pureza/impureza do cinema. É bem possível, portanto, que alguém veja aquela cena final, antes dos arquivos em super-8, como típica imagem de propaganda de banco: Cazuza na cadeira de rodas, rodeado pelo mar e tendo o céu crepuscular ao fundo, seu corpo parcialmente imerso na escuridão, a outra metade apenas silhuetada por uma luz lateral, com a pieguice incrementada pela música de fundo e pela voz em off. Mas essa é antes uma típica composição do cinema anos 80, que pode ser vista em diversos filmes (a exemplo até de Top Gun [1986], bastando substituir a cena por Tom Cruise encostado à sua motocicleta assistindo aos aviões aterrissarem — a composição é a mesma, o conteúdo e, consequentemente, o significado é que são outros).

Formatado para o grande público (no que, a princípio, não reside problema algum — seja lá qual for a versão da história), porém mal-resolvido na sua caretice (pois quer falar de promiscuidade mas não sabe que palavras articular), Cazuza: O Tempo Não Para faz coexistirem cenas de total controle sobre o material (a filmagem do show do Rock in Rio à exata maneira que a televisão fazia na época) com outras de absoluta ingenuidade e desacerto (como na cena do Cazuza se apresentando à banda, ainda no início do filme). Entre a dramaturgia que convence pouco e a visão de um personagem divertido (o lado cômico de Cazuza rende boas tiradas), existe um filme de brilho inconstante e, por vezes, escasso. E já que o tempo não para, é sem temer o esquecimento que deixamos a sala após ver esse filme, mesmo que o sentimento também não seja o de insatisfação completa.

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