sábado, 22 de julho de 2023

Evacuação incompleta

Os Paspalhões e Pinóquio 2000 

(farsa,
BRA, 1982),
de Victor Lima.

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por Andrea Ormond

Quem se acostumou ao xaxado de Galeão Cumbica e ao cavernoso “Calma, Cocada” dos anos 80, descobrirá as maravilhas da diversidade com Os Paspalhões e Pinóquio 2000.

Vestido para matar, o ator Rony Cócegas aparece em outro personagem, fazendo um cover de Zacarias, o amigo da garotada. Rony divide a tela com Olney Cazarré (o corintiano da Escolinha do Professor Raimundo) e um outro jovem que, curiosamente, também lembra o heroico companheiro de Zacarias, o Mussum.

Aliás, teria vindo de Mussum — o xamã que se auto-receitava longas ampolas de cerveja —, uma confidência que chocou Carlo Mossy, o dono da Vidya, produtora do filme. Durante encontro no bairro de Madureira, zona norte do Rio, Mussum teria dado a entender que as semelhanças com a turma do Didi acabariam azedando as empadas da Vidya.

Lenda urbana ou realidade, o fato é que Os Paspalhões e Pinóquio 2000 permanece inédito nos cinemas. Não conseguiu ser comercializado e enfrentou a resistência até de distribuidores amigos, como Luiz Severiano Ribeiro.

Não que esta ausência seja uma crueldade terrível para a história do cinema brasileiro, mas não deixa de ser curiosa a falta de sorte do filme. Ele que é a verdadeira caveira de burro, o boitatá que arruinou as finanças da Vidya, até então feliz qual gato banhado em leite de cabra, aproveitando o sucesso de Giselle (1981).

Os Paspalhões e Pinóquio 2000 sofre de uma megalomania que chega a ser difícil de acreditar. O filme apela para aventura infantil, história da carochinha e delírio tecnológico. Está cheio dos efeitos especiais que dominavam a época, rodados em Los Angeles, como Os Saltimbancos Trapalhões (1981).

Rios de dinheiro foram queimados, um trailer fantasma anunciou o filme que não estreou, casos de agressão acometeram a equipe técnica. O cineasta Afrânio Vital, então continuísta, recebeu uns safanões de uma criatura mais exaltada e foi indenizado pela produtora. O diretor Victor Lima inventou de falecer repentinamente nos Estados Unidos, o que obrigou Mossy a viajar às pressas para a remoção do corpo. Teve que se virar na finalização do filme.

Talvez a solução estivesse em um banho de descarrego, folhas de arruda espalhadas pelo set, algum ritual bárbaro de tribos polinésias. Na prática, Victor Lima — tão veterano da Atlântida quanto J. B. Tanko, ídolo de Renato Aragão —, não deu a liga entre o infantil e a pornochanchada. Até porque, voilá, são gêneros que não conversam muito bem.

Confuso que só, Os Paspalhões e Pinóquio 2000 — batizado por Victor di Mello (diretor de Giselle) — poderia ser mais criativo. Poderia aproveitar a estrela maior, a protagonista máxima: Alba Valéria. No entanto, prefere o glacê das grandes explosões, das naves espaciais, do corre-corre entre vilão e polícia.

Alba — a endiabrada “Giselle” — vive uma pobre órfã (Gracinha). Lutadora de kung fu, Gracinha está sempre rodeada por uma mucama boazuda. As duas usam saias curtas e mostram cavidades que chocariam as crianças, ao entregar as reais intenções deste fiel exemplar do Beco da Fome.

Gracinha se apaixona e entra em ação Dudu França, o compositor do hit disco “Grilo na Cuca”. Dudu vira uma espécie de Mário Cardoso, o galã dos filmes dos Trapalhões. Já Alba Valéria sacoleja o corpo de um jeito que envergonharia as personagens de Monique Lafond (atriz, aliás, que participa de Giselle) ou Lucinha Lins, as paixões de Didi.

Vejam vocês que Gracinha é afilhada do Barão von Karko, grande chefão caucasiano que dá festas para empregados loiros (entre eles, Ted Boy Marino) e comanda Milton Moraes com mão de ferro. O castelo de Von Karko coleciona clichês de espionagem e da Segunda Guerra Mundial — que, muito provavelmente, representavam a encarnação do mal para Victor Lima.

“Todos nós somos bonecos, nossos cordéis são acionados pelos poderosos”. Older Cazarré, irmão de Oldey (dupla antológica na dublagem nacional) tenta segurar as pontas. O cientista sábio que ama crianças e perdeu mulher e filha em acidente de carro. Agora ele impede o plano macabro do Barão, que busca enriquecer vendendo papéis higiênicos e poluindo os reservatórios de água da cidade. Reparem que entre as vítimas encontramos Carlo Mossy, esposa e filha, em aparição relâmpago.

Mas as profundas digressões filosóficas do cientista terminam do nada. Quando menos se espera, o robozinho (Pinóquio 2000) canta para uma criança vestida de boneca Emília. A menina está visivelmente incomodada com a situação, o que chega a ser tragicômico. O anão dentro da carcaça não é o Chumbinho mas, acreditem, exprime toda (nenhuma) graciosidade.

Alguém há de se perguntar como Os Paspalhões e Pinóquio 2000 conseguiu gravar na Vista Chinesa sem o latrocínio de boa parte da equipe, ou no Freeway da inóspita Barra da Tijuca, atrapalhando a classe média que se embrenhava pelo local. Mistérios que engrandecem o mito do filme. Atirando para todos os lados — aventura, espionagem, musical, humorístico — Os Paspalhões e Pinóquio 2000 sensualiza pouco querendo impressionar demais. Enxugando trechos e mais trechos, poderia escapar da encruzilhada espiritual, que o deixou na eterna contramão da bilheteria.

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