quarta-feira, 19 de julho de 2023

Foco narrativo

The Adventures of Tintin 
 
(comédia,
USA, 2011),
de Steven Spielberg.
 


= = =
por Wellington Sari
Contracampo/2012

É bastante curiosa a maneira como Spielberg trabalha o plano neste novo projeto. Há quase sempre muito o que olhar no quadro além das ações dos protagonistas. Isso se dá, obviamente, pela escolha da técnica de captura de movimento que, como em uma animação, permite deixar absolutamente tudo em foco. Entretanto, é notório que o cineasta, de maneira consciente ou não, formulou uma proposta narrativa (algo que vai além da técnica, portanto) baseada na seguinte concepção: a de que cada plano deve ser um espetáculo à parte. Sendo assim, relevando-se um pouco o exagero da afirmação, é possível dizer que cada plano é um micro episódio.

O que Spielberg realiza em The Adventures of Tintin é, de fato, muito mais do que uma experimentação técnica até então inédita em sua filmografia, portanto. Trata-se de uma reformulação, talvez uma depuração, da estrutura narrativa episódica, em que cada cena representa um novo desafio, geralmente com início meio e fim, e adotada pelo diretor em várias obras (a quadrilogia Indiana Jones [1981–2008] sendo o exemplo mais óbvio). É claro que os planos, apesar se aproximarem de micro episódios, não chegam a sustentar tamanha complexidade. Eles ainda atuam como tijolos que sustentam e constroem a cena. No entanto, é como se Spielberg se recusasse a filmar um plano banal, cuja função seria apenas promover uma ligação ou sustentar um ritmo de montagem. Cada plano deve tomar o espectador de assalto. Cada plano precisa ser visto como uma peça única ao invés de um componente do todo. A longa cena de perseguição, sem cortes, no Marrocos é a declaração de princípios de Spielberg para The Adventures of Tintin.

É difícil não se deslumbrar com a atenção pelos detalhes de segundo plano (Milu, pequeno nos cantos inferiores do quadro, muitas vezes faz alguma travessura enquanto Tintim está naqueles típicos momentos de roteiro narrativo comercial, quando detalhes da trama precisam ser esclarecidos ao público, normalmente por meio da palavra; Spielberg insere ação mesmo nos momentos expositivos), em que todos os objetos são dignos de receber nosso olhar. Em nenhum momento essa profusão de punctums no quadro causa qualquer tipo de confusão, pois este é um filme de um diretor que tem na clareza um dos grandes méritos.

Fica bem nítida a impressão de que uma forma próxima do “ideal” (o plano sequência no Marrocos é como a pintura definitiva do esboço desenhado na cena inicial de Indiana Jones and the Temple of Doom [1984]), que permite a Spielberg dar plena vazão ao seu febril e delirante senso de aventura, foi encontrada. Mas, ainda falta um pouco para que este mesmo febril e delirante senso de aventura seja totalmente compartilhado com o público. Afinal, há grande diferença entre deslumbrar e provocar frio na barriga — objetivo primeiro de cineastas como Spielberg. Tomando, novamente, o exemplo da peripécia no Marrocos: por mais que voemos de lá para cá, com se corrêssemos em uma montanha-russa desvairada, nunca sentimos que algo pode dar errado com Tintim naquele momento. Não há suor, arranhões, caretas, rasgos nas roupas, músculos se contraindo — pouco importa se nos quadrinhos estes signos do esforço também não apareçam. Não há presença humana, apenas a de algo que lembra, e bastante, uma. Há algo além do movimento que a fantástica técnica empregada neste longa-metragem ainda não consegue captar.

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