terça-feira, 1 de agosto de 2023

Família nuclear

 La Vita È Bella 
 
(comédia,
ITA, 1997),
de Roberto Benigni.
 


por Paulo Ayres

Para uma melhor apreciação de La Vita È Bella é preciso, de início, constatar aquilo que o filme italiano é: uma comédia. Isso evita certos juízos que desprezam a sua bufonaria e o seu maniqueísmo escancarado. Sim, é uma comédia sobre o Holocausto, mas isso, por si só, não é motivo para a polêmica que lhe cercou e serviu de marketing internacional. A comédia também tem o direito de abordar qualquer tema — assim como a farsa, que é uma sátira ainda mais estilizada que a comédia. A análise do grau de êxito de uma obra comediesca, como de qualquer outro gênero, está em como trata determinado assunto de acordo com a especificidade da sua mediação estética. Contudo, Roberto Benigni revela as limitações dessa obra quando se percebe que, por mais que uma comédia tenha certa flexibilidade — inclusive para retratar um campo de concentração nazista no seu lado desleixado —, há o velho ritual de romantização que sacrifica tudo no altar do padrão de filme “oscarizável”. E, nessa meta, sabemos que foi bem-sucedido, destacando-se na mais célebre premiação comercial do cinema; como se o próprio Benigni fosse o garotinho Giosuè sendo carregado por um tanque de guerra ianque, ao colocar o imperialismo estadunidense como o principal antagonista do imperialismo fascista. Escolha essa que parece mais uma atitude bajulatória do que algo como o apagamento soviético feito no folhetim Inglourious Basterds (2009) — outra famosa sátira sobre a Segunda Guerra Mundial.

Entretanto, o ponto que perturba em  La Vita È Bella não está na insuficiência do seu painel geopolítico, mas no seu movimento tacanho de defesa da ideologia familista. O mote do enredo é a preservação do olhar inocente de uma criança. O Guido Orefice de Benigni é um pai disposto a levar a sua manipulação do entendimento do filho até as últimas consequências. É aí que essa ideia curiosa se arrasta para além do bom senso. Não que não pudesse haver um cara desse jeito, disposto a fantasiar até o fim, acontece que Benigni não está interessado na ambiguidade que há no comportamento excêntrico desse personagem; ele quer elevar Guido ao patamar de herói positivo aos nossos olhos — como atesta o início e o fim do filme narrados em off por um Giosuè adulto, grato pela “brincadeira” do falecido pai. Com efeito, uma das melhores sequências é quando o médico alemão, Doctor Lessing (Horst Buchholz), uma possível luz no fim do túnel para o garçom judeu, revela um alto grau de alienação subjetiva ao enxergar a vida como um mero jogo de enigmas, em meio à barbárie generalizada liderada por seu país. O “palhaço” Guido, incrédulo e melancólico, o fita por alguns segundos. Se  La Vita È Bella fosse arte realista, Benigni também nos conduziria a olhar, em algum instante, o próprio Guido dessa maneira. Contudo, ao contrário, o que temos são alguns momentos hediondos retratados com tintas nobres e piegas. A dor de todos os outros prisioneiros, por exemplo, é jogada para escanteio e Guido faz uma emissão radiofônica, avisando a esposa Dora (Nicoletta Braschi) que ele e Giosuè estão vivos. Enquanto o sofrimento de uma situação-limite desse tipo apaga as fronteiras estranhadas dos núcleos familiares, a trama de Benigni se desenvolve como uma resistência conservadora, um movimento de exaltação da competitividade e das células alienadas típicas da nossa sociedade.

La Vita È Bella, todavia, não é apenas essa operação mesquinha. A primeira metade do filme, mesmo sem ter a ousadia da segunda, é a fração superior, ainda que seja só uma comédia romântica em sentido estrito. Aqui Benigni é feliz em fazer da autocracia burguesa de ideologia fascista, na Itália, um pano de fundo sutil que não se impõe como um corpo estranho, mas se desenvolve cotidianamente de maneira orgânica com a estrutura capitalista herdada da via prussiana. Até a comentada ontologia irracionalista de Schopenhauer, ainda que distorcida vulgarmente por Guido e seu amigo, indica um caldo cultural de tendência niilista. Um bolo etíope, na sequência da festa, ilustra o bastão liberal do colonialismo em mãos fascistas. Em outra passagem da sátira edificante, num momento de deboche dos ideais racistas e eugênicos, fica a reflexão de até que ponto as crianças italianas da escola de Dora são fascistinhas por estar assimilando aquela cultura. A sutileza dessa primeira metade fica mais clara com o corte da segunda, quando a outra nação fascista é mostrada como uma sombra intrusa em terras italianas, e o contraste assume o clichê que contrapõe seres humanos e a massa alemã fria e calculista. Assim, até esquecemos que coisas como eugenia já haviam sido bandeira também de parte dos liberais.

Além de tudo, essa commedia storica possui uma boa reconstituição imagética para o seu nível de gênero ficcional, e com a belíssima trilha sonora de Nicola Piovani dando liga à massa. Da alternância entre a radiante música tema e a introspectiva “Buongiorno Principessa”, Benigni recebe um recurso narrativo forte para acompanhar a sua representação da dualidade de beleza e tristeza na vida humana, mas que não evita, no resultado final, que  La Vita È Bella soe como uma piada sem graça. À maneira da cena em que Guido se finge de tradutor dos soldados alemães, apresentando as regras do “jogo infantil” que irá começar. A plateia de prisioneiros, abatida, praticamente nem reage. Uma performance doentia à la Joker, mas mostrada com a aura apologética de pai protetor. E a grande ironia é que o familismo é um dos pilares ideológicos do fascismo.

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Lista de historical comedy:
[0] Primeiro tratamento: 30/12/2021.
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