sábado, 29 de julho de 2023

Pouso forçado

Sully 

(tragédia,
USA, 2016),
de Clint Eastwood.

 

= = =
por Luís Mendonça
À Pala de Walsh/2016
 
Tudo neste filme parece simples, demasiado simples, quase como se não passasse de uma singela — será assim? — reconstituição dos factos que levaram à heroificação mediática do piloto Sully, depois de este ter aterrado um avião comercial em pleno rio Hudson. Também não há, pelo menos à primeira vista, grande coisa a contar aqui. E Eastwood filma, sem aparente esforço ou brilho, toda a acção. Nada o distrai da tentativa de reconstituição, impedindo de ficarmos mais um bocadinho na solidão do quarto de hotel com Sully ou de contemplarmos demoradamente o seu rosto mais ou menos plano, que tanto nos oferece uma sensação de segurança quanto, logo a seguir, sem mexer uma sobrancelha, nos sinaliza uma luta interior que ainda não foi verbalizada. A interpretação de Tom Hanks é como o herói Sully que é como o filme de Eastwood? De facto, há aqui uma coerência, diria clássica, que é minimamente apreciável. Mas isto é apenas a primeira das superfícies num filme que se limita a planar sobre a sua história e o seu homem. Sem mergulhar.

Que “a história é feita de homens” já todos sabemos, sobretudo, dos filmes recentes de Eastwood, de tal modo estão eles inebriados com a mitologia, muito americana, do herói. Não digo “do super-herói”, mas de um herói humano, portanto, frágil e hesitante. É esta dimensão humana que Eastwood consegue aportar, com relativo sucesso, a este filme. Já o viramos fazer o mesmo em curiosos objectos menores tais como J. Edgar (2011) e American Sniper (2014). Mas o que oferece mais Sully? Não muito mais. A proposta de querer fazer um filme que seja de uma fidelidade total ao seu protagonista é louvável. O problema é que daqui vai resultar um filme plano, sem nuances, esgotado pelo seu propósito glorificador — pelo seu grande elogio a uma pessoa. É, nesse sentido, um filme-dedicatória competente. Entenda-se: só um filme-dedicatória competente.

O conflito de Sully com a sua duvidosa heroicidade — a sua heróica dúvida? Nem tanto — é tão fino quanto os pêlos do seu bigode. Não há chama que arda aqui como também não há nada que estale, que agite as águas, nas várias versões do acidente – tanto as “factuais” reproduzidas à maneira de um Paul Greengrass classicizado como as “sonhadas” espectacularmente por Sully. Lembra Flight (2012) de Zemeckis na sua exaustividade em recriar certo facto — envolvendo a aterragem de um avião ocorrida em circunstâncias pouco claras —, mas, nesse particular, acaba por ser uma versão exaurida, acanhada, “cinzenta”, desse filme. É uma obra à beira da extinção na sua falta de ideias. Os perto de estéreis enxertos do passado mais remoto de Sully são paradigmáticos desta falta de coisas para dizer. Ou, dentro de uma outra perspectiva, deste “cansaço em dizer muita coisa”. Não é que este impasse — que adianta pouco — tenha muita coisa que ver com a dúvida do seu herói. Sully é um filme imóvel. Eastwood não toma grandes riscos aqui, o que, em certa medida, está pouco à altura do feito que relata.

O filme não chega a ser propriamente manco, mas é dos menos ágeis do cineasta americano. É curioso como também se repete — muito se repete este filme… — aquela imagem de Sully a fazer jogging. Ele corre, mas corre cansado. Não encontro melhor metáfora para Sully, este filme competente que pouco brilha — que horror chamar Eastwood competente! É verdade, mas Eastwood não levanta voo há algum tempo. As suas obras-primas máximas dos últimos vários anos são Million Dollar Baby (2004) e Letters from Iwo Jima (2006). Aqui Eastwood debruçava-se sobre homens que eram monumentos nobres de solidão e amor. Combatentes de algo que os superava. Estes filmes comoviam-nos porque eram simples e poderosos.

O que é diferente em Sully? O homem é o mesmo e, apesar da glória ser maior, o seu combate é semelhante. Não tenho dúvidas de que Sully simboliza uma desesperante vontade em acreditar na bondade dos homens — ou será de Deus? — num mundo que ainda não saiu do 11 de Setembro. O filme sugere isso. Todavia, o cinema de Eastwood não responde como se esperava. Ele “aterra” nesta história em modo automático e fica assim até ao fim, engelhando o seu impasse metafísico. Não há voo, turbulência, vertigem… A essa América desencantada Sully parece prescrever uma valeriana. Este “cinema do vovôzinho”, em que Eastwood se parece ter tornado aqui, não quer incomodar nem muito nem pouco. Enquanto escrevo esta crítica, lutando comigo mesmo para não esquecer o filme, não consigo largar a frustração de constatar o pouco impacto que tem este filme sobre o eterno retorno de um “impacto impossível” nas águas gélidas do Hudson. Ele serve o propósito de elogiar o herói, sendo que tudo o mais não passará de uma ligeira “enxaqueca existencial” de tratamento rápido e indolor.
 
= = = 

Nenhum comentário:

Postar um comentário