domingo, 8 de outubro de 2023

Maus lençóis

Love 

(tragédia,
FRA/BEL, 2015),
de Gaspar Noé.


 
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por Ricardo Vieira Lisboa

Quem pensa em Love de Gaspar Noé pensa em sexo em 3D e esse é aliás o grande trunfo do filme, ou melhor, do marketing do filme — os gurus desse papão da publicidade afirmam que o marketing é coisa que deve ser considerada logo na origem dos projectos, aqui isso é mais que evidente. No entanto, aquilo que transforma Love num objecto sociologicamente interessante passa exactamente por ser um filme que sendo vendido através desse chamariz pornográfico preserva, de algum modo, um valor cultural e artístico que justifica dessa forma o consumo pornográfico sem estigma por uma faixa social que não só não o faria doutro modo, como encontra nessa oportunidade uma abertura única, e dificilmente repetível, para aceder publicamente e em grupo a ejaculações em grande plano, broches e punhetas bem administradas, sexo heterossexual a dois e a três, em diferentes posições e com diferentes corpos. E tudo em 3D — pela primeira vez os óculos funcionam não só como propiciadores do efeito estereoscópico mas como de viseira, não vá alguma coisa saltar-nos para a vista.

Mas o que me interessa não é o fenómeno sociológico, é sim o cinema e é disso que se tem que falar. É injusto dizer que na obra de Noé o cinema está ausente, assim como será injusto também dizê-lo no caso de Love. Como um dos grandes provocadores do cinema contemporâneo (ao lado de Lars von Trier ou Nicolas Winding Refn) o cineasta franco-argentino diverte-se em provocações, contrariando exactamente as expectativas construídas pelo marketing numa acentuada mão que se nota a cada escolha de mise en scène. Assim Noé evidência-se na mastigação das formas simétricas de Kubrick trabalhando num scope espelhado pelo eixo central onde por norma se dispõem os personagens, e em cantantes travellings kubrickianos esvoaçando-se pelas divisões de um pequeno apartamento parisiense. A juntar a isso há a obsessão por um conjunto de planos muito limitados, sempre o olho de Deus sobre os lençóis, sempre o mesmo enquadramento da mesa de restaurante, do quarto e das ombreiras da portas e das janelas. Quando Noé passou pelo IndieLisboa no passado mês de Abril confessou que quis seguir os ensinamentos de Ozu e reduzir a sua gramática fílmica a um conjunto muito limitado de planos. Pois bem, falo de Noé e já conspurquei o nomes de Kubrick e Ozu…

Mas ainda há mais: por ser o protagonista de Love um cineasta em princípios de carreira e um cinéfilo, o filme enche-se de cartazes, DVDs e cassetes VHS. Assim encontramos ao longo do filme referências a The Birth of a Nation (1915), M (1931), Freaks (1932), Peeping Tom (1960), Taxi Driver (1976), Angst essen Seele auf (1974), Salò o Le 120 Giornate di Sodoma (1975), Profondo Rosso (1975) e claro, 2001: A Space Odyssey (1968) e A Clockwork Orange (1971). Como se Gaspard Noé tentasse uma inscrição no filme duma possível historiografia dos filmes e cineasta que trabalharam sobre o efeito do choque ao longo do século XX, colocando-se portanto como o porta estandarte dessa parada fílmica que soube melindrar os espectadores puritanos dos seus tempos. A par disso também salpica as paredes com cartazes de filmes como Emanuelle in America (1977) e Flesh for Frankenstein (1973), tentando a inscrição do filme na corrente do softporn dos anos 1970 em que o cachê artístico e o pendor erótico andavam ainda de mãos dadas.

Mas dizia que Noé se deliciava a contrariar as expectativas do porno estereoscópico. Esses são até os momentos mais curiosos do filme, quando a câmara se demora longos minutos em planos sem qualquer profundidade, mais que isso, em planos onde o fundo é um lençol enrugado, como que afirmando que o 3D pouco mais deixa ver que o pano branco da tela. Ou quando nos oferece uma série de fotografias em três dimensões negando exactamente essa característica, dividindo o ecrã na imagem referente a cada olho. A juntar a estas interrupções coitais a estrutura narrativa do filme em constante ziguezague temporal acrescenta mais uma dose de surpreendente arrojo ao projecto. Mas então se tudo é assim tão interessante e desafiante onde se encontram motivos para tantas bolas negras que se acumulam pelas tabelas sentenciadoras? A resposta é… tudo o resto.

É exactamente por a trama e os personagens serem insuportáveis, o filme ser de uma lentidão sofrível e haver pompa romântico-moralista a atravessar tudo e todos (o filme podia integrar uma campanha a favor do sexo protegido) que a atenção se prende nos enquadramentos, na escala dos planos, nos efeitos tridimensionais e naquilo que reveste as paredes. O pendor cinéfilo do filme é, assim, o único elemento que de algum modo torna suportável as mais de duas horas de duração. Pormenores tão simples como o facto de o personagem conservar um saquinho de ópio numa caixa vazia de uma cassete: o fetichismo do VHS como uma droga sentimental.

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