domingo, 31 de dezembro de 2023

Mosaico evolutivo

The Tree of Life

(tragédia,
USA, 2011),
de Terrence Malick.
 

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por Fábio Andrade
Cinética/2011

Pedra nos sapatos
 
Para melhor se aproximar de The Tree of Life, ou de toda a obra de Terrence Malick, talvez seja necessário voltar a referências que antecedem o seu trabalho no cinema, quando ele se dedicava a estudar e traduzir para o inglês trabalhos do filósofo alemão Martin Heidegger. Em A Origem da Obra de Arte, Heidegger cria um exemplo bastante didático do potencial filosófico da arte, a partir de uma obra amplamente conhecida: Um Par de Sapatos, de Van Gogh. Para Heidegger, o quadro era exemplar pois, a partir de um objeto concreto e mundano, apresentado de uma maneira bastante específica, o artista consegue disparar uma série de processos de pensamento em quem tem contato com a obra: não é tão somente um sapato, mas um sapato camponês, que traz em si o peso do trabalho, a sujeira proveniente do uso diário, e, consequentemente, uma relação de classe, de cenário, de tempo, de paisagem que ajuda a definir aquele objeto. Não é, portanto, tão somente um sapato, mas uma representação de um sapato, que carrega, consigo, um mundo.

Não é absurdo dizer que essa percepção de Heidegger está, de fato, na raiz de toda representação — incluindo, aí, boa parte do cinema. Mas, no trabalho de Terrence Malick, é possível perceber que isso não é simplesmente algo intrínseco, mas de fato um ponto de partida consciente para se criar imagens que almejam e remontam essa excelência representacional que Heidegger definia como uma aspiração da arte. Esse processo está mais visível no jogo entre imagem e voice over de The Thin Red Line [1998] junto a nós, o narrador observa o rosto de um soldado japonês morto enterrado no solo, e aquela imagem lhe suscita pensamentos e ruminações que chegam ao espectador pelo texto da narração. É como se Malick criasse a imagem e, junto dela, expusesse o processo de pensamento que ela dispara em quem a observa.

The Tree of Life usa estratégia parecida, mas que aqui é combinada a uma abordagem formal e estrutural em um primeiro momento bastante impressionante. Experiência sem paralelos claros na história, The Tree of Life vem com a marca dos filmes malditos que abrem novas possibilidades para o cinema que parecem impossíveis de serem levadas adiante (Sunrise [1927] de Murnau; Limite [1931] de Mário Peixoto; os filmes de Leos Carax), decupado, filmado e montado a partir de uma língua absolutamente própria, fazendo uma combinação bastante surpreendente da apreensão dos entusiasmos da vida de um Dziga Vertov com uma vontade bastante clara de se construir personagens e contar uma história, mesmo que de forma essencialmente lacunar. Terrence Malick não só busca imagens “definitivas” para tudo que filma, como coloca esse definitivo em choque com uma estrutura que torna tudo fugidio. The Tree of Life combina as elipses violentas de Badlands [1973] com os planos “resumos de mundo” de Days of Heaven [1978], aqui marcados por enquadramentos absolutamente vertiginosos, cortes arriscadíssimos e uma decupagem circular, que cisca em torno dos momentos narrados pelo filme, construindo não exatamente uma narrativa, mas um mosaico de impressões de vida. Em The Tree of Life, há falas, não diálogos.

Mas talvez o maior desafio de Malick com esse filme seja justamente o de aliar essa potência do fluxo das imagens e da vida com o desejo heideggeriano de criar cada pequeníssimo plano como um novo Sapatos, de Van Gogh. Todo plano no filme almeja ser a representação definitiva de um sentimento de mundo que recobra origens específicas — a graça e a natureza, conceitua a voice over logo no começo do filme — e uma sensação de que a história pessoal pertence e dá continuidade a uma história do universo. Não há dúvidas, portanto, que The Tree of Life é um filme de ambições monumentais, relacionando — sem constrangimento, mas de forma nem sempre habilidosa — a rotina de uma família americana na década de 50 (que, como todas as famílias de Malick, arquetipiza o norte-americano original, com a coloração amish dos cabelos de Jessica Chastain e os cabelos com corte de soldado de Brad Pitt e seus filhos) com a origem do mundo e da vida na Terra. Cada imagem de vivência familiar em The Tree of Life vem imantada pela ambição de se conectar ao princípio da vida em si, com uma abordagem do tempo e do espaço que é tão física (dos dinossauros aos garotos americanos, as personagens vivem uma rotina de dominação, e carregam no corpo as marcas dessa vivência, como os sapatos camponeses levam consigo o seu uso) quanto evocativa: na obra de arte, os sapatos são, sem dúvida, um par de sapatos; mas só há obra de arte se eles não forem somente um par de sapatos.

Se esse desejo de representação ainda parece encontrar sua melhor forma em Badlands, os motivos ficam claros em The Tree of Life: no filme de 1973, o poder individual de cada imagem era chocado violentamente a uma narrativa rasteira e direta, encontrando em personagens tão críveis quanto desregrados uma clareira para o pensamento. Em The Tree of Life, os efeitos se diluem justamente na monumentalidade de suas ambições, pela necessidade de dar representação “literal” ao que não pode ser representado literalmente. Daí que, apesar de o filme ser uma experiência bastante intensa para qualquer pessoa interessada em cinema, seu fracasso em dar conta de si mesmo é também decorrente de sua originalidade formal. Pois a natureza circular que permite que o filme seja um experiência tão única é a mesma que o faz criar toneladas de imagens para representar os mesmos sentimentos, montando teses complicadíssimas para tentar dar conta do que há de mais simples. Daí que evocações tão fortes quanto a do pai que, após a morte do filho, se arrepende por ter brigado com ele pela maneira atrapalhada com que ele virava as folhas da partitura de piano, sejam dizimadas pelas horas de reiteração da relação opressiva do pai com o filho, tentando cristalizar o que é necessariamente fugidio.

Mas mais do que pecar por uma simples reiteração, o problema mais grave de The Tree of Life é que, embora todos os seus planos tenham ambições de serem Sapatos, poucos realmente o são. Pois se é necessário mergulhar nas profundezas do quadro de Van Gogh para extrair seu sentido, em The Tree of Life a agilidade de suas epifanias (não é descabido pensar no cinema de Jonas Mekas, com a diferença que Mekas produz esse sentimento de mundo sem filmá-lo como uma tese) depende de sentidos que estão muito à flor da representação, nas camadas mais superficiais de cada plano. Nesses momentos, o filme se aproxima demais da mais asquerosa publicidade, reiterando na imagem paralelos e processos mentais que já existem na relação com o espectador. Quando há a necessidade constante de uma representação perfeitamente apreensível (e o excesso de perfeição em cada plano é o que faz de The Tree of Life o filme mais imperfeito de toda a carreira de Malick), é inevitável resvalar nas tentações do didatismo e das simplificações. Se a casa é um útero e o nascimento é uma bênção da natureza, por que não representar um parto logo por uma casa dentro de um lago, que cospe o protagonista pela porta da frente? Se um homem faz as pazes com sua história, por que não dobrar o tempo e colocar todos os personagens caminhando em uma praia, fazendo carinhos fantasmas na cabeça do protagonista? Se há uma passagem espiritual a se fazer, por que não colocar o protagonista atravessando uma porta no meio de uma paisagem sem paredes?

A resposta que parece faltar a Malick em grande parte de The Tree of Life é: porque representações dessa “facilidade” já não dizem mais absolutamente nada. As mensagens são transmitidas com presteza, mas a força artística nunca dependeu da presteza para transmitir coisa alguma. Não é à toa que os grandes momentos de The Tree of Life — e não há dúvida que eles existem — sejam aqueles que parecem, e apenas parecem, menos preocupados em dizer claramente alguma coisa. São momentos em que a materialidade bruta da representação evoca sentidos e sensações; mas esses sentidos provêm dessa representação, eles não são representados por ela. O sentimento brutal e imemorial de pertencimento (à natureza, à humanidade, à história) é muito mais fortemente presente em uma cena de crianças que se divertem com o caminhão do fumacê do que nas sequências longuíssimas dos ícones mais desgastados da origem do mundo, com vulcões em erupção e Big Bangs em CGI. The Tree of Life está cheio demais de Big Bangs — de origens, de processos, de consequências, de sentidos — para que possamos, de fato, nos perder em sua fumaça. Troca-se a pintura de um sapato capaz de carregar um mundo por um mundo que parece apenas a pintura de um sapato — exatamente o tipo de banalização que faz da publicidade um meio de comunicação tão indistinto e eficaz. E é neste tipo de procedimento — pesadas cortinas que por vezes se abrem e permitem breves vislumbres de maravilhamento — que The Tree of Life sai da vertigem extasiada de quem gira incessantemente em círculos, feito uma criança que se deleita com o torpor de seu próprio movimento, e passa a de fato girar em falso, espanando seus próprios encaixes, banalizando suas maiores conquistas.

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