sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Porta trancada

Os Farofeiros 
 
(comédia,
BRA, 2018),
de Roberto Santucci.
 

 

por Paulo Ayres

Ao estabelecer a opção de ser narrado por uma criança, Os Farofeiros indica que será um relato descontente de um ser social em formação primária e, em consequência disso, com uma carga de sinceridade considerável. Essa franqueza, por vezes insensível, é esparsa à medida que se adentra o mundo adulto, pois as relações sociais nessa dimensão interagem de maneira mais mediada, configurando-se um reino da falsidade na particularidade capitalista. E é justamente sobre esse tema recorrente que se desdobra a comédia de Roberto Santucci. O filme junta em férias, numa só tacada, quatro núcleos familiares e quatro colegas de emprego, ou seja, um espaço para se sobrepor relações afetivas e relações laborais, fazendo comentários sobre as hipocrisias que imperam nesses níveis do cotidiano. 

O narrador é filho de Alexandre (Antônio Fragoso) e Renata (Danielle Winits), o casal que recebe um relevo um pouco maior por ter, entre os segredos abordados, aquele com mais peso enquanto base de sobrevivência: uma questão trabalhista — curiosamente, no marketing do filme, os humoristas Maurício Manfrini e Cacau Protásio, como o casal Lima e Jussara, aparecem como destaques dessa sátira edificante. Promovido, Alê terá que escolher um dos três servidores de colarinho branco para a demissão. Aliás, é bem interessante o jeito que as determinações da esfera laboral e da esfera doméstica se entrelaçam, onde a primeira acaba por se impor, gerando um tratamento de bajulação feito pelos dois casais que descobrem os planos do escritório. Diferente da “comédia de portas”, com um ritmo de exposição em entradas e saídas, a casa rústica manifesta um clima de portas trancadas e interações desconfiadas.

Igualmente atrativo são certas satirizações no âmbito mais estrito da afetividade. A nossa tendência poliamorosa escapa em certos comentários de algum cônjuge, fazendo o outro ter uma reação de “quê?!”. Com efeito, há dois momentos de desfile sedutor que abalam os casados: primeiramente, com os maridos vendo Elen (Aline Riscado) — em certa medida já tratado como algo comum pela tradição patriarcal — e depois, aí sim mais subversivo, com as esposas perante o “faz-tudo” Adônis (Felipe Roque). Uma baita tensão sexual.

Os Farofeiros, ademais, não tem receio de ousar na sua abordagem comediesca. Às vezes, indo até a fronteira do gênero em estilização: como a cena em que Renata parece uma criatura horrorífica vinda da piscina verde; e até ultrapassando, incoerentemente, os limites de gênero: o papo dos mosquitos farsescos. Entretanto, se num cinema de Maringuaba, por sinal, o elenco ironiza  e encara o seu público, nos sermões do réveillon praieiro, ao contrário, a comédia desemboca na coalizão conservadora com o mesmo. Nem a gag dos fogos de artifício é capaz de reaquecer a sátira depois desse banho de água fria. Apesar do desfecho romântico, a harmonia familista soa mais como uma aliança provisória, pois não “resolve” (nem esclarece por discurso) as inquietações afetivo-sexuais e o fardo produtivista que presenciamos anteriormente.

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[0] Primeiro tratamento: 17/05/2021.
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