sábado, 13 de janeiro de 2024

Audição aguçada

Sing
 
(farsa,
USA, 2016),
de Garth Jennings.
 


por Paulo Ayres

No mesmo ano em que foi lançado o filme Zootopia (2016), Sing apareceu para explicitar fronteiras de propostas satíricas. Não se trata somente de comparar animações que são parecidas tematicamente, ou melhor, antes de adentrar na análise do conteúdo é preciso observar uma diferenciação fundamental na forma, algo que pode passar despercebido num olhar mais superficial. O ponto de partida para o cotejo: as duas sátiras são de gêneros distintos. O filme da Disney é uma comédia, o da Illumination é uma farsa. Constatar isso, de início, evita pensar que esse último é mais desleixado em sua representação, pois a mediação aqui é outra. Sing potencializa a ideia de que a antropomorfização ficcional de animais serve para observar nós mesmos em traços mais gerais, sem a necessidade de priorizar as intensas variações corporais numa vã explicação.

Estamos nas antípodas das audições às cegas do programa televisivo The Voice. Para Sing conseguir o seu impacto estético é preciso sobrepor som e imagem. O seu combustível é contraste, muito contraste. E não basta apenas uma fauna diversificada em versão “socializada”, mas uma discrepância e variabilidade entre as performances de canto e as figuras que se apresentam. Nesse sentido, o ritmo ágil da narrativa facilita a opção pela montagem paralela, ao acompanharmos, de maneira extremamente veloz, os dilemas de cada vida dos selecionados da competição musical organizada pelo coala Buster Moon (voz de Matthew McConaughey). Sobrevoos acelerados sobre a cidade de Calatonia indicam a ligação dinâmica que há em Sings. Não há tempo para teorizar sobre a opção paródica apresentada, mas há tempo, dentro do típico desenvolvimento farsesco, para detectarmos as várias determinações sociais que cruzam o caminho do enredo entrelaçado. A porca dona de casa e o jovem gorila criminoso, por exemplo, sinalizam temas que vão do doméstico ao criminal sem a sátira edificante parar para fazer um discurso direto sobre esses tópicos.
 
O holofote discursivo, digamos assim, está sobre o empreendimento de Moon, incluindo o percurso moralista da farsa. Com exceção da porca-espinho roqueira interpretada pela voz de Scarlett Johansson, os cantores não estão lá para expressar em canções aspectos de suas vidas, como geralmente ocorre em musicais. O filme de Garth Jennings encanta por se dedicar ao espetáculo em si mesmo. O palco como superação do cotidiano. A voz como superação corporal. Superação no sentido dialético de conservação e ruptura, é claro. Tanta variação e agilidade se unindo num instante contemplativo. Isso lembra um pouco a canção “A Banda”, de Chico Buarque.
 
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