Num determinado ponto de Kill Bill: Vol. I, no meio da chacina que a personagem A Noiva desencadeia para aplacar sua sede de vingança contra a chefe yakuza O-Ren Ishii, o filme instantânea e a arbitrariamente perde a cor (o pretexto é uma cena em que a personagem arranca os olhos de um dos capangas de O-Ren), continuando em preto e branco até que um piscar de olhos da protagonista seja o suficiente para que o filme volte às suas cores originais. Essa cena-dentro-da-cena tem antes de tudo uma função de equilíbrio visual, e, numa menor medida, narrativo: remete para o começo do filme, quando vemos, também em preto e branco, A Noiva sendo torturada por Bill, num plano aproximado do rosto da personagem feminina. Este flashback estilístico — flashback porque não vemos nenhuma imagem do passado mas acedemos a algumas delas através de um procedimento visual diferente — nos aproxima da vingança da Noiva porque curto-circuita causa e efeito e recoloca o preto e branco, já esquecido, novamente nos trilhos do filme. (Em Kill Bill II — é importante frisar que trata-se de um filme só, estilística e narrativamente — veremos também cenas em p&b?) Mas a importância principal da passagem de cores nesse momento do filme é simplesmente estar lá, perspectivar nossa imersão no filme, mostrar que o cinema é arte lúdica, abraçar o arbitrário como se fosse o melhor amigo. Escapismo pop, filme-Z-de-orçamento-A, ode à violência? Nada disso. Quentin Tarantino é um homem que pensa a imagem (e a imagem de seu tempo) como poucos, e intuiu logo cedo que a única maneira de restituir crença a uma imagem cinematográfica hoje é realizar uma quase paradoxal mistura de cinema de gênero (lugar da crença por excelência) com o pop mais descarado (lugar do cinismo por excelência). Não à toa, foi o único homem que conseguiu construir nos anos 90 uma cinefilia nova — mesmo que problemática — através de seus filmes.
Quentin Tarantino é um excelente crítico de seus próprios filmes. Kill Bill, para ele, é sua primeira incursão no “mundo do cinema”, enquanto seus outros três longas fazem parte do “mundo de Quentin”. Isso é menos uma desculpa do que a inserção num outro código de cinema que reflete as alterações da imagem cinematográficas desde Jackie Brown [1997], seu último longa, até hoje. Desde então, grande parte dos filmes mais interessantes surgidos assume uma postura reflexivo-conceitual de citação. Podemos falar de filmes tão diversos quanto Psycho [1998] e Gerry [2002], ambos de Gus Van Sant, Far from Heaven [2002] de Todd Haynes, Histoire(s) du Cinéma [1988–1998] de Godard ou os dois Charlie's Angels [2000–2003] de McG. Neles, o que se toma emprestado (seja Hitchcock, Sirk, videoclip, Richard Lester ou Bela Tarr) é condição para aquilo que se tem a dizer. Não se trata de cinema reiterativo, mas de um cinema que cria a partir de um outro. O ready-made cinematográfico sempre esteve latente no cinema de Tarantino; em Kill Bill, ele faz do empréstimo de fórmulas e imagens o centro de seu cinema. Num determinado momento, falamos de esquizopop-art, e agora é a ocasião de trazer o termo novamente à tona.
Kill Bill é uma homenagem a Chang Cheh, mais importante realizador de filmes de Hong Kong nos anos 70, e também às diluições televisivas que esse cinema rendeu nos Estados Unidos. Ora, tanto Chang Cheh quanto Sergio Leone — sabidamente o realizador preferido de Tarantino — fazem parte do momento crepuscular do cinema de gênero, numa época em que esse cinema passava a remeter imediatamente não mais ao mundo, mas às figuras tornadas clichê do próprio cinema. A chave era reinvestir a imagem com tipos já conhecidos do espectador, fazendo com que o interesse principal do filme circulasse em torno do estilo, da mise-en-scène e do poder icônico da imagem (outro preferido de Tarantino, Brian De Palma, é o principal responsável por essa virada dentro do cinema americano). Passada a tábula rasa dos anos 80, quando uma nova tentativa de acesso ao real se perde num total chororô da perda de referência e da crença (Wim Wenders, morte do cinema, etc.), é necessário retornar aos velhos clichês para reconstruir um cinema que fale sobre o cinema e que, mesmo em detrimento de uma certa preocupação profunda com o real, faça voltar um culto de adesão à imagem que consiga criar diferença no mundo de hoje.
Dito tudo isso, Kill Bill: Vol. I cumpre à risca e excepcionalmente seu projeto. O filme devolve à imagem toda a capacidade de fascinação que ela pode ter, agregando a ela toda uma miríade de referências acavaladas cuidadosamente uma atrás da outra, sejam os filmes de Hong Kong (Chang Cheh, mas também King Hu e Ching Siu-tung), seja o cinema de animação japonês (anime), sejam os westerns italianos (através da trilha sonora). A referência funciona em chave afetiva-conceitual mais do que narrativa (como em McG, aliás, mas ao contrário de Haynes — em que é estratégica), e é dessa afetividade que extraímos o conteúdo positivo do filme. Quentin Tarantino expõe apaixonadamente em primeiro plano todas as suas obsessões estilísticas, e do poder evocativo e deliberadamente excessivo dessas imagens nasce nossa própria paixão pelo filme. Ele ama seus artifícios estilísticos da mesma forma que os pintores uma vez amaram suas musas (e ele mesmo ama – cinematograficamente – Uma Thurman) e suas cores, como os escritores amam a cor da tinta sobre o papel branco.
A história de Kill Bill é menos a vingança de uma mulher-fantasma contra aqueles que a torturaram e deixaram-na em morte iminente do que uma verdadeira narrativa interna em que som e imagem contam sua própria história. A densidade dos personagens, exigência aqui negada de certos espectadores “sérios” e “consequentes”, dá aqui lugar a uma densidade de construção, e seria muito mais justo dizer que a história do filme começa com Nancy Sinatra, circula por um hospital, por uma bela casa de subúrbio (em que se vê, pelos planos verticais do teto e pelo split-screen, uma tirada de chapéu a De Palma), depois passa por um assovio diegético que se transforma em som de fundo, vira animação, entre tantos pontos singulares que a trama estética inclui. Kill Bill: Vol. I desenvolve-se menos a partir de uma dinâmica narrativa do que através de uma lógica de intensidades de estilo. A Noiva, personagem criado por Quentin Tarantino & Uma Thurman conjuntamente, é mais um vetor do que um centro. É ela que passa por todos os lugares e situações, mas são esses lugares e situações que constituem o foco do filme. A única lógica narrativa de Kill Bill é a da genealogia da violência: passados traumáticos criam atualizações sangrentas (e o filme vai muito fundo nela quando A Noiva conversa com a agora órfã filha de Vernica Green, reconhecendo a necessidade moral de um futuro duelo). Lógica a jamais encontrar um equilíbrio, um fim — uma vez que um ato de violência sem dúvida chamará outros novos, e assim infinitamente —, funcionando como um motor da História e das histórias.
Assim, de ponto singular em ponto singular, o filme se constrói em sucessões de clímax não só astutamente encadeados como incrivelmente diferenciados uns dos outros, e cada um chamando outro, até um fim (que não vem). A se referir, principalmente, a uma impressionante cena dentro da batalha no restaurante japonês em que a luz se apaga e vemos, em plano geral fixo — ritmadamente cortado por alguns planos mais aproximados —, apenas as silhuetas da Noiva e dos capangas de O-Ren lutando sobre fundo azul. Convém lembrar que antes disso, em chave mais virtuosa, o filme tinha nos impressionado com um plano sequência fenomenal tanto em construção de espaço quanto em virtuosismo, deixando nossa heroína ir reservadamente ao banheiro e vai passear por todo o hall da Casa das Folhas Azuis para depois voltar ao banheiro, onde nossa heroína já completou a toilette. Nosso olho poderia pedir mais? Tarantino, ao contrário de todos os outros, diz que sim: depois ainda veremos, ao fim da sequência, um deslumbrante combate num jardim artificial cheio de neve nos fundos do restaurante. Em oposição à lógica do oponente infinito — os tediosos agentes Smith de The Matrix [Reloaded e Revolutions, 2003] — e do mal infinito — a bravura insuportável da série The Lord of the Rings [2001–2003] —, Tarantino nos entrega a saga do cinema infinito, que movimenta-se tendo como combustível a ação e como limite a imagem. Fim? Nada disso. Mais no próximo episódio...
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O que uma imagem pode? Essa parece ser a preocupação crucial de QT ao realizar seus filmes, ao menos desde Pulp Fiction [1994]. Uma preocupação que mudou: primeiro, tratava-se de estabelecer seu cinema; hoje, trata-se de manter um posto. Posição perigosamente reacionária, que seu autor consegue conjurar brilhantemente jamais entregando exatamente o que se espera dele. Coquetel narcísico do cinema mergulhando sobre si mesmo pra extrair apenas sensações sem densidade? Antes um cinema crítico — e nesse sentido muitas vezes seus próprios filmes esvaziam a análise crítica que é feita deles —, um cinema que escolhe suas posições e vai ao fundo delas. Um cinema desses exige a mesma dedicação e entrega que Uma Thurman dilacerando um a um seus inimigos, seja ao som de punk-bubblegum ou disco-flamenco (o ecletismo sonoro espelha o visual), funcionando no ritmo “dos outros” — suas influências — para dentro deles firmar sua própria assinatura. Observando a Noiva, podemos fazer a perguntas spinozista: “O que um corpo pode?” A pergunta faz eco com o questionamento do que pode a imagem cinematográfica hoje. QT ainda não responde, mas ao menos afirma (e a prova parece incontestável): ela ainda pode muita coisa.
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