O específico está morto; longa vida ao específico
Moonlight é uma história em três partes sobre a vida de Chiron, um garoto que cresce em um bairro barra pesada sob o sol de Miami. O filme é baseado em uma peça não-montada com o belo título In Moonlight Black Boys Look Blue, escrita por Tarell Alvin McCraney, que, como o diretor Barry Jenkins, cresceu naquela região. No texto que apresentava a mostra de filmes curada pelo diretor para o Lincoln Center, em Nova York, Jenkins estabelecia um paralelo entre a estrutura de seu filme e a de Zui Hao de Shi Guang (2005), longa de Hou Hsiao-hsien que mostrava três histórias de casais em diferentes eras, usando abordagens estilísticas distintas (inclusive a do cinema silencioso) para dar conta das mudanças políticas e sociais na China.
Apesar da estrutura tríptica, Moonlight não chega imbuído de ambições estruturais semelhantes, que em Zui Hao de Shi Guang encontravam força de expressão igualmente potente em suas três partes e nos intervalos entre elas, tornando a comparação mais uma demonstração de wishful thinking do que uma aspiração — e muito do filme e do fenômeno de recepção que o cerca se explica justamente na confusão entre esses dois desejos. Aqui, o fatiamento episódico está de fato mais próximo das muitíssimo influentes proposições de Jean-Jacques Rousseau para a educação infantil em Emílio, ou Da educação (1762), que divide os anos de formação de um homem em três grandes blocos, que o filme separa com intertítulos.
A primeira parte retrata Chiron em determinado momento de sua infância (interpretado por Alex Hibbert), que coincide com a primeira transição apontada por Rousseau, por volta dos doze anos de idade. A segunda se fecha em parte da adolescência (Ashton Sanders), novamente batendo com a virada em Emílio, aos dezesseis, encerrando inclusive com a prescrição rousseauniana de um despertar sexual, que aqui desemboca em violência. E o terceiro mostra sua vida adulta (Trevante Rhodes), período menos claramente demarcado que Rousseau estende até o casamento, cruzando enfim o limite em que o indivíduo se vê suficientemente formado para construir sua própria família, e que encontra paralelo metafórico na cena no restaurante ao final do filme, que carrega inclusive o compromisso de castidade (“Eu não toquei ninguém desde então”, diz o protagonista, em união sacramentada com um afago).
O diretor sublinha o aspecto formativo dessa divisão dando nomes diferentes ao personagem em cada uma delas, que também ilustram as cartelas que as separam: Little na primeira; Black na terceira; apenas Chiron na do meio, novamente aderindo à idealização de Rousseau da “posição intermediária entre a indolência de nosso estado primitivo e a atividade petulante de nosso egocentrismo” (extremos aqui indicados por uma autoconsciência física que parte da aparência: Little — pequeno — e Black — negro — apelido que lhe é conferido pelo primeiro amante, próximo ao fim da segunda parte, e que o marcará na terceira) — e usando um recurso clássico de romances de formação, presente em, por exemplo, Finding Nemo (2003). Em Moonlight, a parte do meio é a experiência autêntica formativa que carrega as duas outras, seja como trauma ou responsabilidade: é a idade das escolhas.
Abertamente um estudo de personagem, o filme declara total fidelidade a seu herói desde o fim de seu breve prólogo, e conta que o espectador fará o mesmo. Não obstante, as causas reais para essa identificação vêm por meios que não são de fato debitáveis ao personagem, mas sim a um projeto prévio: Chiron é um personagem exemplar porque o filme assim o quer. Desde sua primeiríssima aparição — um borrão que corta o quadro em disparada, fugindo dos bullies do bairro, que aos poucos se acomodará na posição de presa com olhar servil — Chiron encarna com perfeição o conceito de “protagonista vazio”, arquétipo de interioridade de olhos grandes que talvez tenha originalmente aparecido como um desafio à própria ideia de protagonismo (“proto” = primeiro, principal, mais importante; “agon” = desafio, luta, disputa), mas que se tornou especialmente comum na produção contemporânea que circula pelos festivais de cinema (além de cineasta, Jenkins é também um dos curadores do Festival de Telluride). Projetado contra a paisagem da filosofia de Rousseau, este vazio se aproxima do mais conhecido mito rousseauniano do “bom selvagem” (não à toa, são personagens que têm o destino atravessado pela justiça e pela lei) e da impressão de que o garoto é autocriado: sem parâmetros claramente estabelecidos por figuras de referência tradicionais, o herói em formação define seus traços na luta cotidiana com seu próprio ambiente. Muito como Emílio, Moonlight está interessado em decodificar uma forma pela qual este “bom selvagem”, este “homem natural”, pode sobreviver em uma sociedade degenerada e corrupta, confiando aqui em outra forma de educação: a pedagogia das ruas, com as contradições de seus desejos, seus impulsos e sua própria violência.
Nesta jornada da infância à vida adulta, as transformações deste “homem natural”, sujeito além do bem e do mal aprisionado pela própria passividade (mesmo que ela seja provocada de fora para dentro), são em geral ditadas pelo mundo ao seu redor: o vício em drogas da mãe (Naomie Harris) colabora com seu vaguear cotidiano, ilustrado desde o princípio na seringa em contraluz encontrada em seu esconderijo; a aparente ausência de um pai o leva a começar uma relação com Juan (Mahershala Ali), traficante de bom coração emigrado de Cuba, e sua companheira Teresa (Janelle Monáe); os abusos corriqueiros na escola e no bairro nublam sua autodescoberta como homossexual. Daí, nasce seu conflito, que ganha um peso metalinguístico depois do sucesso do filme na última cerimônia do Oscar: um personagem que precisa lutar contra toda sorte de adversidade para poder simplesmente exercitar o direito de ser o que já acredita ser — uma espécie de Emílio circular, em trajetória para frente que tem no horizonte a conquista de voltar para a primeira casa.
Para compor esse cenário, o filme faz leves, mas significativos ajustes que trazem a estrutura emiliana aos dias de hoje: a primeira relação sexual é com outro homem — possibilidade distante ao modelo heteronormativo de Rousseau; a presença do tráfico de drogas sugere um deslocamento do ponto de referência moral, estabelecendo uma contradição à Rashomon (1950) que não diminui a nobreza de caráter das personagens — grande desvio da virtude nos tempos de Rousseau (sob o sol de Miami, cada um vende a própria cicuta); a impressão de um microcosmo político se fecha em um mundo habitado quase exclusivamente por personagens negros, em movimento que se assemelha a 35 Rhums (2008), de Claire Denis (ou, em matéria de gênero, a L'Inconnu du Lac [2013], de Alain Guiraudie). Nada disso é exatamente novidade na história do cinema, mas o caráter programático do conjunto confere a Moonlight um polimento de relevância, propondo uma condensação de pautas num contexto em que a diversidade e a injustiça foram enfim, e muito tardiamente, trazidas para o centro das atenções – e, em consequência, do tapete vermelho e dos planos de marketing das grandes corporações (a Academia sendo uma delas).
A atenção ao vazio de Chiron transforma este romance de formação em um testemunho de determinismo: o protagonista realmente ativo aqui não é ele, mas sim o seu entorno. Seu futuro é produto direto de seu passado e do mundo à sua volta, e, ao protagonista órfão de ação, resta pouco além de cortar nas linhas pontilhadas — (o)pressão colonialista que se esconde sob a capa de contemporaneidade no desfile de marcas do cinema contemporâneo (Dardenne, por exemplo), e que é tanto social quanto narrativa. “Achais que um menino que alcançou assim seus quinze anos tenha perdido os precedentes?”, diz a linha derradeira do terceiro livro de Emílio, fechando um capítulo de clareza titular: “Resultado”. “Você não mudou nada”, diz Kevin (André Holland), aliviado, ao reencontrar, na terceira parte, o amigo e amante da segunda, de coração puro imaculado a despeito de todas as adversidades. No aparente anti-drama de um (anti)protagonista que não muda, Moonlight encontra a coerência de um arco dramático.
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[0] Parte inicial do ensaio.
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[0] Parte inicial do ensaio.
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