(tragédia,
BRA, 2013),
de Gustavo Galvão.
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por Paulo Santos Lima
por Paulo Santos Lima
Cinética/2014
Crise de meia estrada
Título do segundo longa de Gustavo Galvão, Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa vem de Howl and Other Poems [1956], de Allen Ginsberg. Vem também da vontade do diretor de trabalhar com um repertório beatnik. Curioso que a cultura beat é marca da modernidade americana do século XX a ponto de ter se tornado… uma marca, uma identidade que esteve no melhor artístico (Two-Lane Blacktop, que já é o pé na estrada nas pradarias da contracultura, em 1971) e, no pior, em roadmovies fetichistas com estradas e rebeldes cool e desgarrados, com cigarro na boca. É o preço a se pagar pela força de uma tradição identitária — como o Cinema Novo, a Bossa Nova, o samba, personagens em crise como Paulo Martins/Jardel Filho de Terra em Transe (1967).
Mas o beatnik não está na tradição do cinema brasileiro. A contracultura, esta sim, fez história íntima conosco, nos anos 1960, quando já havia uma real modernização na cinematografia nacional, num momento em que se encontrou uma forma (uma imagem) que traduzia e inspirava todo um estado de coisas, caótico e de crise, que encontrou estrada para falar do país — mentalidade, tradições, conflitos e história. Contracultura (também conhecida como Cinema Marginal, Teatro Oficina, Tropicalismo) e Cinema Novo também incluso. O que importa é que a opção de Galvão parece reiterar a escolha em não seguir pelos passos das tais certas tendências do cinema brasileiro. Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa é a desconstrução, pois sua pretensão é a de olhar mais para a falta de substância duma crise que, hoje, parece mesmo artificial, construída, manjada demais para favorecer uma reação avante. Não à toa, a lógica circular que engendra a narrativa e o percurso de Pedro (Vinicius Ferreira) e do falante e discursivo rebelde Lucas (Marat Descartes) só confirma uma imobilidade. O drama de Pedro, que o filme acompanha desde seus primeiros passos na estrada, fugindo de Brasília para lugar algum, é sério, mas sua repercussão histórica é banal. Não será o filme, mas os próprios personagens que trarão isso à tona, um ao outro, sobretudo e em princípio Lucas, que ridiculariza Pedro e sua mobilidade letárgica, que parece sem fundamento, sem projeto. Pela boca e overacting do Lucas de Marat Descartes, o tom é de pândega, de consciência transmitida por farsa assumida. Essa falta de horizonte vista entre a melancolia e a ironia tem, aí sim, algo de beatnik. Mas só nisso. Inclusive porque, até nos Estados Unidos, o único modo de estabelecer uma vivência mais originalmente beat seria através do próprio mito. E não, não o On the Road (2012) de Walter Salles, ou Into the Wild (2007), de Sean Penn, ambos puros fetichismos do etiquetário de marcas. Mas através de registros mais apurados, talvez nas bordas do cinema do Abel Ferrara (mas o lá de trás, de Blackout), do Road to Nowhere (2011) de Monte Hellman lidando com os anos 2010, ou o Herzog de Bad Lieutenant: Port of Call New Orleans (2009). Mas são presenças rarefeitas, ainda que mais firmes a uma ideia contra cultural do beatnik, nada a ver com os adesivos que David Lynch colou ora com certa luz e quase sempre com uma grosseria oportunista atroz.
Ao lidar com esse desejo por beatnik (mais que desejo beatnik), Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa não demonstra facilidades, e procura pisar a passo possível — possível, jamais seguro. O terreno é árido, como mostram os primeiros minutos (e passos) de Pedro no filme, uma estrada de massa asfáltica batida, linhas de arames farpados e a raia condutora da estrada assentando geometrias quase intransponíveis. Reforça a alta pressão, a forte música dissonante — composição de Ivo Perelman, músico cuja escolha parece ser menos uma facilidade de ter um grande nome e mais a constatação de que tudo, do cinema à arte e também à trajetória daqueles personagens, está ocupado por um repertório que se confunde com a própria história da humanidade. Afinal, a crise de Pedro, saberemos mais à frente, é já uma recorrência do cinema e da literatura existencialista, uma crise do homem, mas que, no filme, é uma crise mais doméstica de um sujeito de saco cheio de Brasília. O próprio Lucas, aventureiro desgarrado com quem Pedro esbarra nessa que poderia ser a fuga de casa dum menino aborrecido com os pais, será uma figura quase metalinguística, um porta-voz da gramática que compõe a estética off road, rebelde e contra a cultura.
Se existe alguma teatralidade, ela está no espelhamento entre o silêncio de Pedro e a máquina falatória de Lucas. O primeiro transmitindo uma densidade que é diluída nas provocações de Lucas. E o discurso libertário deste último sendo desmentido pela anestesia de Pedro. Parece óbvio o antagonismo, mas é a partir duma relação que se constrói entre os dois que, em vez de uma revelação, surge uma constatação sobre a trajetória circular, de cachorro correndo atrás do próprio rabo, na qual ambos estão desde o início de seus projetos. Não é o retorno de Carlos (Walmor Chagas) ao frenesi materialista de São Paulo em São Paulo S.A. [1965], pois ali é a revelação duma roda-viva com a qual nós e o cinema teríamos de lidar ainda ali (e o cinema poderia lidar ainda hoje). É a constatação de um estado de coisas arruinado, porque optou-se em certo momento pela dinâmica de um disco — de um disco arranhado. A lógica é reiterativa, contemplativa de certos arquétipos, que são utilizados levianamente ou levados a sério demais. A própria montagem do filme revela, lá na frente, uma ideia de mobilidade imutável, de ação que não age, apenas posa. O próprio Lucas é isso, e ele grifa ao longo da narrativa que a suposta genialidade de um amigo chamado Jesús (um caminhoneiro paraguaio vivido por Leonardo Medeiros), o pé na estrada, a rebeldia contra caretice geral e o gosto pela liberdade sem fim são meras colagens, grifes.
Constatar a prisão do giro em falso e a opção em não levar o fracasso a sério não é uma saída colorida aos personagens. É o pesadelo sonorizado pelo sorriso de Pedro e Lucas e pela trilha de aspereza brutal que parece gritar ao mundo que a estrada agora é um círculo pintado no chão. Não é uma constatação pacífica, já que existe uma recusa a essa certa tendência em se consumir repertórios como crise, redimensionamento macro etc. O drama de Pedro e Lucas é justamente não encontrar na crise um certo repouso. É uma questão a ver com o cinema e as artes brasileiras. Nisso, a revelação de Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa segue uma postura beatnik de expor um sintoma crítico, de ir assim contra a cultura. O disco é mais visto pelo movimento na vitrola, raramente pelo giro em torno de si, e nunca pelo som repetido pelo arranhão. Aumentar o som a estourar os tímpanos já é alguma mudança.
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[0] Parte do texto sem a longa introdução.
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