segunda-feira, 4 de março de 2024

Lei ordinária

Curly Sue 
 
(comédia,
USA, 1991),
de John Hughes.
 


por Paulo Ayres

O último filme que John Hughes dirigiu não conseguiu a fama das obras em que abordou o mundo adolescente, contudo, é o que ele expande mais o olhar sobre os contrastes sociais. Dessa vez, não se trata de observar a hierarquia, o prestígio e os outsiders do ambiente escolar médio-classista, mas no contexto amplo do cotidiano numa metrópole. Deste modo, Curly Sue é um conto familista que traz novos olhares para o panorama do cineasta. Um ano antes, Hughes havia escrito e produzido o sucesso Home Alone (1990). Repetindo o mesmo gênero temático de lumpen comedy, Curly Sue se diferencia por apresentar uma via alternativa ao crime e fazer disso a questão a ser refletida. Além disso, numa conversa sobre a classificação de seus pequenos golpes, Bill (Jim Belushi) e Curly Sue (Alisan Porter) se observam como diferenciados entre os foras-da-lei, ou seja, estão em um nível inofensivo, distintos de Harry e Marv — os “bandidos molhados” que roubam casas em Home Alone —, por não terem a intenção de lucratividade, apenas da mais imediata sobrevivência.
 
Bill e Curly Sue não são uma dupla qualquer de sem-tetos, mas têm os contornos de  pai e filha, servindo de ingredientes para uma estratégia ficcional que usa a marginalidade para a afirmação de valores familiares da média abastada. Todavia, numa camada inferior do enredo — mas muito mais interessante — são os guias subversivos de um rasteiro e festivo anticapitalismo romântico. Os dois lúmpens miseráveis têm muito a ensinar a advogada moldada no racionalismo formal, Grey Ellison (Kelly Lynch). Uma pena que esse roteiro de Hughes se interesse mais pelo tema de adaptação e conciliação, usando Curly Sue como uma fonte de fofura que une mundos distintos de maneira mecânica. Resta uma condução de poucos choques classistas e um clímax monótono com orfanato e prisão.

Pensando bem, esse adoção do ponto de vista marginal só serve para comentários bem pontuais sobre a desigualdade social em Chicago. No universo da high school, Hughes foi mais eficaz em encontrar uma afetividade em meio a transgressões, sem explicitar a divisão dualista de valores, como ocorre em Curly Sue.  Na outra ponta do sistema, a advogada se cansa da coisificação acentuada no serviço e abandona o negócio, porém, há um último golpe de alta classe nas brechas da legalidade, justificado como preservação familiar. Ademais, isso reflete o próprio ritmo piegas com brechas engraçadas: a sátira edificante possui uma encenação contida e salpicada com humor sobre etiqueta e pancadas como gags.

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