terça-feira, 16 de abril de 2024

Conciliação de classes

Invictus 

(tragédia,
USA/RSA, 2009),
de Clint Eastwood.
 
 

por Paulo Ayres

Uma sala espaçosa de gente branca abastada. Os familiares estão acompanhando o jogo da Copa do Mundo de Rugby de 1995, que ocorre na África do Sul pós-apartheid. Ao abraçar o evento esportivo como um símbolo de união nacional, Nelson Mandela (Morgan Freeman), então presidente da república, possibilitou que o país experimentasse um espírito unitário após um período de intensa segregação racial. Um momento em que a empregada doméstica negra, na casa comentada, ganha alguma visibilidade no lar e se sente um pouco da família. Com o título conquistado pelos anfitriões, diversas imagens de diferentes lugares mostram pretos e brancos comemorando, confraternizando. Se num bom drama edificante, como Million Dollar Baby (2004), Clint Eastwood adentra um mundo em que enfatiza o antagonismo social, as luzes e sombras dos desníveis laborais e afetivos, numa encomenda como Invictus sua lente busca um relato ensolarado e bem otimista.

Eastwood é um grande cineasta. Mas, diferente dos fãs que passam pano para seus deslizes estéticos, é preciso olhar com atenção e reconhecer cada bola fora que faz sua carreira ter altos e baixos bem salientes. Sim, ele é um mestre da narrativa clássica. Esse domínio de composição artística, no entanto, está a serviço de que num reles produto motivacional? Cenas pedantes sobre o valor do perdão e a necessidade de liderança agregadora não estão apenas preenchendo o discurso triunfante, mas reescrevendo a história com caneta romântica. E, nesse sentido, o recorte de roteiro é ainda mais hipócrita ao ter como uma mensagem enfatizada “o passado ficou para trás”. Invictus é, ao menos, sincero no seu desejo de ter mais que o apaziguamento, quer o apagamento da história — projeto impossível, ela sempre estará presente. Ou, melhor, quer que parte da história seja confinada num museu, paralelo e inspirador, como um poema de resiliência para cada vida individual — cena em que o capitão da seleção de rugby François Pienaar (Matt Damon) conhece a prisão em que Madiba ficou. Nesse mundo fantasioso apenas há obstáculos e desentendimentos. O racismo estrutural é esvaziado de seu significado concreto. Sem contradições essenciais e seguindo um suspense pré-definido da tabela das eliminatórias da competição esportiva, o roteiro força algumas faíscas de tensão, como na sequência em que um avião sobrevoa estranhamente o estádio lotado. Lembra en passant certas cenas de avião que ocorreriam em Sully (2016), outra cinebiografia medíocre de Eastwood.

Tudo bem fazer um filme sobre o velho e social-democrata Mandela. Contudo, para ser um relato crível sobre a conciliação de classes é necessário, antes de tudo, refletir que esse movimento conciliatório é extremamente contraditório até o nível da insustentabilidade, mantendo-se apenas no pacto de aparências e em níveis mais imediatos. Pode-se então fazer uma comparação com Lula, o Filho do Brasil (2009), de Fábio Barreto, do mesmo ano — embora o drama brasileiro seja, ao contrário, sobre um período do Lula antes de ser presidente. A elegância com que Eastwood filma não modifica a essência do projeto. Dois filmes edificantes que são daqueles casos em que a tragédia ficcional nem parece tragédia, tamanho o grau de pedantismo e superficialidade. No panfleto de Eastwood, todavia, há um cuidado maior na elaboração dos planos, na reconstituição histórica. Aqui ele reina sozinho e é possível ver que lhe faz falta um roteiro que seja mais complexo para além das frases políticas de efeito e conversas de bastidores do Governo Mandela, como as dos seguranças, sendo gradualmente envolvidas pelo mito encarnado. Não é novidade que a temática esportiva, na ficção, é bastante usada para fazer uma palestra motivacional. Coach, nesse caso, não é apenas o treinador, mas o conhecido fetiche ontológico de psicoterapia e empreendedorismo.

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