sábado, 22 de junho de 2024

Leitura dinâmica

Anchorman:
The Legend of Ron Burgundy 

(farsa,

USA, 2004),
de Adam Mckay.



por Paulo Ayres

Um filme que ironiza uma pequena crise patriarcal dos anos 1970 com a ascensão parcial do feminismo e, ainda assim, carrega uma reverência ao protagonista masculino até no título. Essa contradição de Anchorman: The Legend of Ron Burgundy diz bastante sobre a proposta de uma farsa metalinguística que tem bastante criatividade, contudo coloca um limite rebaixado na sua subversão. É, ao mesmo tempo, uma crítica ao machismo e uma atualização branda do mesmo.

Lá pelo meio da sátira, quando parece que tudo está entrando no caminho habitual de uma estrutura de roteiro, há uma exaltação do seu espírito subversivo, criando uma luta entre os grupos de homens que representam distintos canais de televisão. Entre as participações especiais desse confronto ensandecido está até o Ben Stiller. Entretanto, esse momento anárquico — repetido num tom maior no final da continuação Anchorman II: The Legend Continues (2013) — funciona somente como um descarrego de seu potencial, concentrando tudo de forma desordenada nessa passagem. Por mais que tenha uma rebeldia estética, as coisas vão se afunilando no molde de uma sátira edificante de amor. Nessa concepção, Adam Mckay — diretor de Step Brothers (2008) e Don't Look Up (2021) — não faz da personagem de Christina Applegate o centro, mas a coloca como um contraponto importante que equilibra um pouco os excessos. Ver Veronica Corningstone se tornar coapresentadora do telejornal perturba a turma de Ron Burgundy (Will Ferrell), âncora solo de uma estação fictícia de San Diego, KVWN Channel 4.

Dos três escudeiros de Ron Burgundy, o homem do tempo feito por Steve Carell, falando frases aleatórias, mudando de lado, sendo o extremo da figura de um bobo da corte, é aquele que também indica a distribuição irregular da satirização. É como se ele representasse o ímpeto irônico da farsa, por sua posição bem coadjuvante, contendo expressões que estão além da cerimônia conciliatória e clichê e, por isso, a narrativa se desvia dele e da sua característica indomável.

Assim como há a questão do desempenho de âncora e do trabalho da equipe do jornalismo na trama, Mckay realiza um filme que é, de certa forma, na aparência, uma revista eletrônica com vários esquetes. Quando se satiriza a tradição de certos telejornais de colocar uma reportagem “fofa” sobre animais, por exemplo, Anchorman: The Legend of Ron Burgundy cria pequenos segmentos para preencher seu tempo. Por trás da ousadia, há toda uma diagramação tradicional. Na frente da performance humorística, há um texto limitante como se fosse lido em teleponto. Leitura dinâmica, mas binária.

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