sexta-feira, 21 de junho de 2024

Espetáculo niilista

O Grande Circo Místico 
 
(dramédia,
BRA/POR/FRA, 2018),
de Carlos Diegues.
 
 

por Paulo Ayres

A última dramédia de fantasia de Cacá Diegues tem um visual gótico à la Tim Burton com um peso sufocante à la Lars von Trier. Em outras palavras, O Grande Circo Místico é uma obra autofágica que se desenrola de maneira decorativa, enquanto direciona seu conteúdo com uma força determinista. Exibicionismo e maldição.

Se é verdade que o roteiro tem vida própria por sua originalidade, por outro lado, ecoa ao fundo sua fonte de inspiração de duas camadas: diretamente, o poema (1938) de Jorge de Lima; indiretamente, a adaptação em espetáculo musical, cuja trilha sonora gerou um grande disco na história da música brasileira, O Grande Circo Místico (1983). No filme de Diegues, nesse sentido, as canções compostas por Edu Lobo e Chico Buarque comparecem como performances pontuais em números circenses ou música de algum ambiente (algumas na versão original, outras regravadas). Tornam-se mais um enfeite para o enredo deprê e secular.

Numa longa passagem de tempo condensada em cinco gerações, O Grande Circo Místico soa mais hereditário do que histórico na sua transitoriedade episódica e carnal, em que mal nos aproximamos das personagens e já estamos presenciando o novo gancho carregado de pesar. As determinações históricas, com efeito, surgem em detalhes quase sempre cenográficos; por exemplo, quando Oto (Juliano Cazarré) instala um televisor com antena no seu trailer. Os membros da família Knieps, em seu percurso de 1910-2010, podem até envelhecer e morrer — diferente de Célavi (Jesuíta Barbosa), o misterioso “anjo da guarda” do circo —, no entanto, parecem mortos-vivos carregando uma sina particular, alheia ao mundo externo para além daquele microcosmo. Se Bye Bye Brasil (1979) é uma dramédia de Diegues que viaja geograficamente em busca do Brasil, O Grande Circo Místico é uma dramédia que viaja no tempo para se esconder do Brasil. No seu último ato, o da decadência generalizada, chega a parecer um mundo paralelo, onde o contato com o exterior se dá somente através da prostituição, quando o público-cliente vem atrás do serviço das gêmeas.

Falar sobre a situação difícil da arte no mundo capitalista é sempre um tema pertinente, momento de autoconsciência sobre o nosso tempo, todavia, é preciso estar atento em como comentar isso com metáforas. O espetáculo (circense, cinematográfico etc.) decadente pode, querendo ou não, ser abordado como fetiche e, inclusive, o final surreal colabora com essa leitura. Desse modo, o resultado obtido por Diegues contem uma virtuosidade técnica de encher os olhos, mas é carente de melhor elaboração e de vitalidade para seus personagens malditos. O ultrarromantismo passa como um rolo compressor. Na trajetória de várias décadas ficam estupros, incestos, uma bad trip etc. tratados rapidamente. E, num drama niilista carregado de ironia, a maior delas não está desenvolvida: a figura mais viva ali é um mestre de cerimônias meio fantasmagórico. Ce n'est pas la vie.

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[0] Primeiro tratamento: 19/05/2021.
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