quarta-feira, 31 de julho de 2024

Projeção realista

Cinema, Aspirinas e Urubus
 
(tragédia,
BRA, 2005)
de Marcelo Gomes.
 

 
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por Carlos Alberto Mattos
Críticos/2005

Sertão em tom menor
 
O talento de Marcelo Gomes já se insinuava há tempos no cenário do árido movie pernambucano. Além de dirigir o curta Clandestina Felicidade [1998], inspirado em Clarice Lispector, ele havia colaborado em curtas de Claudio Assis, Lírio Ferreira, Adelina Pontual e Karim Aïnouz. O roteiro de Cinema, Aspirinas e Urubus já comia poeira há cerca de oito anos, até que finalmente chegou às telas com jeito de coisa nova — uma obra, aparentemente, sui generis no cinema brasileiro contemporâneo.

Mas talvez não seja tão nova assim — o que não reduz, mas até aumenta os seus méritos. A fotografia de Mauro Pinheiro Jr. (o próximo Walter Carvalho?), brincando ostensivamente com a luz dura do sertão, evoca a estética do Cinema Novo rural. Há mesmo momentos que sugerem homenagens explícitas a Vidas Secas [1963] e Os Fuzis [1964], entre outros. A ambientação nos anos 40 acarreta inusitadas semelhanças com Casa de Areia [2005], de Andrucha Waddington, por mais distantes que os filmes estejam em tudo o mais.


De certa forma, a premissa da exibição cinematográfica ambulante, com as emoções previsíveis do “cinema pela primeira vez”, constitui um lugar-comum do road movie autorreferencial. É claro que o filme não busca aí a sua força, mas na evolução da amizade entre o alemão desgarrado Johann e o nordestino Ranulpho, louco para se desgarrar. A virtual troca de papéis entre esses dois homens — Johann penetra cada vez mais no Brasil enquanto Ranulpho deseja evadir-se — faz o encanto e alimenta as expectativas do público. No entanto, mesmo aí, o roteiro sofre perdas de consistência a meio-caminho, tateia um bocado até retomar algum vigor entre a primeira e a segunda metades.

O que permanece sempre rijo e envolvente é a direção em “tom menor” de Marcelo Gomes. Não é sempre que topamos com um filme cujos diálogos não parecem ter sido cuidadosamente escritos de antemão, mas que, ao contrário, fluem da própria vivência da ação, como num documentário. A química entre João Miguel e Peter Ketnath, ambos extraordinários, garante uma “verdade” que chega inteira ao espectador. No que dizem – e sobretudo no que não dizem — esses dois homens em busca da felicidade, seja em forma de comprimido ou de gestos humanos, reside o inusitado de Cinema, Aspirinas e Urubus. A convicção no uso discreto da cenografia e da linguagem cinematográfica completa as virtudes de um filme que devemos reter, não como uma revolução, mas como um marco de maturidade do cinema brasileiro.
 
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