por Paulo Ayres
Em certo momento de Philadelphia, o juiz lembra que dentro daquele espaço não se permite nenhuma forma de discriminação, no caso a homofobia, indicando que é um espaço geográfico em que o suposto “contrato social” está em pleno funcionamento prático de suas premissas. É o momento em que o advogado Joe Miller (Denzel Washington), com certa ironia, lembra que o caso que está sendo julgado ocorreu do “lado de fora”. Área complexa da reprodução social em que a racionalidade formal do direito está imbricada com uma vida cotidiana que a transcende, lotada de contradições reais, e nem o chamado “direito ao contraditório”, do jargão jurídico, dá conta de ajustar de forma rígida. Philadelphia é um bom drama edificante que indica ter consciência da complexidade social.
Entretanto, como romantismo crítico, o percurso narrativo se ajusta, gradualmente, em certa fórmula redentora e, em certo sentido, beirando o aspecto didático às vezes. O diretor Jonathan Demme tem a seu dispor dois grandes atores como eixo principal. Mas nem as performances cheias de nuances da dupla dinâmica evita o esquematismo do roteiro. Se, por um lado, Joe Miller convence como um sujeito depurando e superando aos poucos a sua LGBTfobia, os capitalistas, cuja empresa é acusada de discriminação, vão recebendo contornos vilanescos mais acentuados no conservadorismo — embora haja, também, a advogada feita por Mary Steenburgen, não apenas insinuando, como dizendo que odeia o papel que desempenha naquele julgamento.
O tom crescente de exposição gera um incômodo que Andrew Beckett (Tom Hanks) transparece bem — o ponto alto é o interrogatório com uma câmera subjetiva torta indicando debilidade e constrangimento. É uma amálgama com a temática de costumes, mais especificamente a sexualidade. Demme fez um filme sobre a aids quando a doença ainda estava sendo repercutida com um pânico moral acentuado e, no início, foi até chamada de “câncer gay”. Hoje em dia, se fosse feito um remake invertendo os casais, um hétero com HIV e um advogado homossexual defendendo, deixaria mais evidente que a questão vai além, inclusive na estrutura monogâmica, algo só insinuado no filme de 1993.
Para além dos discursos didáticos e da tragédia hospitalar com ares de martírio orgânico, ficamos com belas amostras audiovisuais da diversidade e da fragilidade sociais. Na geografia humana da Philadelphia mostrada com a canção de Bruce Springsteen, nos créditos iniciais; e as mudanças corporais de um único indivíduo, no caso Andrew Beckett.
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