Divino Amor
(tragédia,
BRA, 2019)
de Gabriel Mascaro.
por Paulo Ayres
O ano é 2027 e, apesar de não haver muitos detalhes, percebe-se que o contexto apresentado pelo drama realista é, provavelmente, de uma autocracia burguesa. Há um tipo de controle comportamental em classificações oficiais do estado brasileiro referente à moralidade. Presume-se que o cristianismo é a ideologia oficial orientadora desses catálogos, mas Divino Amor não discorre sobre as cúpulas de poder político. Acompanhamos a vida de Joana (Dira Paes), servidora pública que atende casais em vias de formalizar o divórcio. Tal como o estilo discreto da narrativa, a funcionária do cartório busca fazer os cidadãos desistirem da ideia. Faz propaganda e convite de um grupo evangélico chamado Divino Amor. A camada mais imediata de impacto do filme é, obviamente, a mescla de reunião cristã e casais praticando suingue. Entretanto, isso não é uma fusão tão estranha quando se atenta para o fato de que é apenas uma quebra de muros visíveis na vida cotidiana da média da população. Embora não seja necessariamente nesses atos mais extravagantes, é comum haver no reflexo cotidiano, enquanto existência prática e senso comum, um entrelaçamento de materialismo moral e ontologia metafísica. A camada de materialismo moral diz respeito às decisões práticas que agrupam comportamentos, hábitos e costumes em variadas esferas, de maneira concreta e pragmática. Quando o assunto são relações sociais de lazer e afetividade sexual, nos últimos tempos, tornou-se explícito o descompasso prático e de visão de mundo — embora também seja comum recursos ideológicos que justificam essa cisão, como, por exemplo, falar em “vida de solteiro” e “vida de casado”... Na igreja de Divino Amor, o dogma flexível incorporou a prática de troca de casais de maneira ritualística. A meta é evitar que o tédio, o ciúme etc. sejam fatores de dissolução do casamento.
Realizando o sonho de engravidar, Joana passa a ser o vetor de tensão quando pesquisa materiais genéticos e é informada da incompatibilidade do seu feto com o material do marido e dos parceiros religiosos pesquisados. Sem criar uma ameaça para além da má reputação e do estigma formal do estado, Divino Amor é uma tragédia audiovisual sobre a burocracia e o mercado da fé. O mundo rígido de Joana desaba em parte, ainda que de maneira serena na superfície das fachadas residenciais. Lá no fundo da casa, o marido Danilo (Júlio Machado), fazendo coroas de flores para funeral, não parece disposto a aceitar uma explicação sobrenatural para o fato. Nem mesmo o filme pretende fazer mais investigações. Aparentemente é uma obra sobre um messias. De certa forma, também há abertura para outra leitura, a de erro tecnológico, de exame falho ou de memória pouco nítida de Joana. O foco da ironia não está no conteúdo de determinada ontologia metafísica, mas em relação à supervisão moralista através de tecnologia.
Como parte do serviço de atendimento aos fieis, um drive-thru da oração. Em cada ida de Joana ao local, Mascaro apresenta um ângulo de enquadramento. Numa das vezes é a percepção de dentro do carro. Ali um pastor (Emílio de Melo) é conselheiro e condutor da reza. Outra variação que se nota é a de cores na iluminação do interior residencial, destacando uma cortina ou outra coisa como se fosse um filtro de raios solares. O ambiente em penumbra, marcado pela infertilidade de Danilo, dá lugar ao filho que, mesmo como símbolo de esperança, é marginalizado e sem registro. Reconversão dentro de uma conversão religiosa.
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