quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Conversão realista

Divino Amor

(tragédia,
BRA, 2019)
de Gabriel Mascaro.


por Paulo Ayres
 
A velha, e pertinente, questão da laicidade do estado ganha um tratamento centralizado em Divino Amor. O drama brasileiro aposta na criação de uma atmosfera misteriosa, numa forma de distopia discreta que cria um ambiente próximo do nosso período histórico. Sublinha e transborda tendências modernas, numa roupagem aparentemente contemporânea, sem recorrer a uma dose de futurologia indiscreta. Para além disso, na questão formal quanto ao estilo narrativo, Divino Amor não cria sequências de conflitos mais intensos, como uma perseguição. Tudo se apresenta numa distância de análise de comportamentos. Não no sentido de dissecação da arte naturalista. Felizmente, o filme de Gabriel Mascaro possui um conjunto de elementos que também cria uma via mais direta de aproximação. Destaque nesse sentido está a narração em off de uma criança que, em certo sentido de inocência irônica, descreve os fatos como um testemunho de fé e uma hagiografia.
 
O ano é 2027 e, apesar de não haver muitos detalhes, percebe-se que o contexto apresentado pelo drama realista é, provavelmente, de uma autocracia burguesa. Há um tipo de controle comportamental em classificações oficiais do estado brasileiro referente à moralidade. Presume-se que o cristianismo é a ideologia oficial orientadora desses catálogos, mas Divino Amor não discorre sobre as cúpulas de poder político. Acompanhamos a vida de Joana (Dira Paes), servidora pública que atende casais em vias de formalizar o divórcio. Tal como o estilo discreto da narrativa, a funcionária do cartório busca fazer os cidadãos desistirem da ideia. Faz propaganda e convite de um grupo evangélico chamado Divino Amor. A camada mais imediata de impacto do filme é, obviamente, a mescla de reunião cristã e casais praticando suingue. Entretanto, isso não é uma fusão tão estranha quando se atenta para o fato de que é apenas uma quebra de muros visíveis na vida cotidiana da média da população. Embora não seja necessariamente nesses atos mais extravagantes, é comum haver no reflexo cotidiano, enquanto existência prática e senso comum, um entrelaçamento de materialismo moral e ontologia metafísica. A camada de materialismo moral diz respeito às decisões práticas que agrupam comportamentos, hábitos e costumes em variadas esferas, de maneira concreta e pragmática. Quando o assunto são relações sociais de lazer e afetividade sexual, nos últimos tempos, tornou-se explícito o descompasso prático e de visão de mundo — embora também seja comum recursos ideológicos que justificam essa cisão, como, por exemplo, falar em “vida de solteiro” e “vida de casado”... Na igreja de Divino Amor, o dogma flexível incorporou a prática de troca de casais de maneira ritualística. A meta é evitar que o tédio, o ciúme etc. sejam fatores de dissolução do casamento.
 
Realizando o sonho de engravidar, Joana passa a ser o vetor de tensão quando pesquisa materiais genéticos e é informada da incompatibilidade do seu feto com o material do marido e dos parceiros religiosos pesquisados. Sem criar uma ameaça para além da má reputação e do estigma formal do estado, Divino Amor é uma tragédia audiovisual sobre a burocracia e o mercado da fé. O mundo rígido de Joana desaba em parte, ainda que de maneira serena na superfície das fachadas residenciais. Lá no fundo da casa, o marido Danilo (Júlio Machado), fazendo coroas de flores para funeral, não parece disposto a aceitar uma explicação sobrenatural para o fato. Nem mesmo o filme pretende fazer mais investigações. Aparentemente é uma obra sobre um messias. De certa forma, também há abertura para outra leitura, a de erro tecnológico, de exame falho ou de memória pouco nítida de Joana. O foco da ironia não está no conteúdo de determinada ontologia metafísica, mas em relação à supervisão moralista através de tecnologia.
 
Como parte do serviço de atendimento aos fieis, um drive-thru da oração. Em cada ida de Joana ao local, Mascaro apresenta um ângulo de enquadramento. Numa das vezes é a percepção de dentro do carro. Ali um pastor (Emílio de Melo) é conselheiro e condutor da reza. Outra variação que se nota é a de cores na iluminação do interior residencial, destacando uma cortina ou outra coisa como se fosse um filtro de raios solares. O ambiente em penumbra, marcado pela infertilidade de Danilo, dá lugar ao filho que, mesmo como símbolo de esperança, é marginalizado e sem registro. Reconversão dentro de uma conversão religiosa.
    
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