sexta-feira, 7 de julho de 2023

Providência divina

Evan Almighty 
 
(comédia,
USA, 2007),
de Tom Shadyac.
 


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por Gilberto Silva Jr.
Contracampo/2007

Pensando de uma forma simples, não haveria muito o que dizer sobre Evan Almighty. Projeto típico de uma Hollywood caça-níqueis, concebido a partir de um oportunismo picareta, aproveitando o pretexto de uma continuação de um título de sucesso, só que ignorando o astro original (Jim Carrey) e promovendo a protagonista um personagem secundário do primeiro filme [2003], cujo intérprete (Steve Carrell) conquistou posteriormente o status de estrela, tanto no cinema como na TV. O resultado é, como não poderia deixar de se esperar, mais uma caretice de apelo familiar, uma edificante e previsível exaltação de valores tradicionais, tão cara e recorrente ao trabalho do diretor Tom Shadyac, responsável pelo nefasto Patch Adams (1998).

Entretanto, partindo de um ponto de vista mais atento, esse filme torna-se um caso curioso para refletir um pouco sobre a forma como o cinema americano ao mesmo tempo re-aproveita e recodifica seus próprios modelos clássicos. O ponto de partida do filme — Evan Baxter, um homem honesto do interior, é eleito deputado federal e tem que se confrontar com o oportunismo e a corrupção das velhas raposas que dominam o congresso — é um tema recorrente no cinema que Frank Capra desenvolveu durante as décadas de 1930 e 40, em especial o argumento da obra-prima Mr. Smith Goes to Washington (1939). Porém, no filme de Capra, o protagonista, Mr. Smith, vivido por James Stewart, se calcaria em seus próprios méritos pessoais para combater as manipulações politiqueiras. O que vemos em Evan Almighty é que o filme transmite uma crença de que, nos dias de hoje, somente a determinação dos homens não seria mais suficiente para uma imposição dos padrões considerados éticos. Far-se-ia premente uma intervenção de instâncias divinas, como a do Deus bonachão (Morgan Freeman) que impõe a Evan sua transformação em um Noé reencarnado.

Uma outra contraposição do filme de Shadyac à matriz traçada por Frank Capra vem do fato que, nos filmes deste último, o que se pretendia era uma exaltação de valores supostamente progressistas e igualitários, encarnados nos ideais do Partido Democrata, por mais que consideremos discutível essa associação. Bem, no caso de Evan Almighty, sua aparente exaltação de valores religiosos tradicionais vem se encaixar na pauta de um fundamentalismo cristão-protestante que ascendeu em consonância com a atual administração Republicana de George W. Bush. É certo que o filme não faz isso de forma agressiva; sua suposta pregação seria um tanto sutil, de forma a não desagradar ou afastar audiências não religiosas, vestindo-se com uma capa bem-humorada. O que não podemos ignorar, e esse filme em especial é um belo exemplo disso, é como por vezes a mais aparentemente inofensiva peça de entretenimento pode refletir a forma como o pensamento coletivo reinante em determinado momento histórico — ou ao menos uma parcela deste — parece se manifestar e se reproduzir.

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