sábado, 8 de julho de 2023

Vida artificial

Sky Captain and the World of Tomorrow 
 
(folhetim,
USA, 2004),
de Kerry Corran.
 

 

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por Eduardo Valente
Contracampo/2004

Desde os primeiros créditos de Sky Captain... fica bem clara a autoconsciência de Corran quanto ao diálogo muito próximo com o kitsch que seu filme estabelecerá. Se tem uma coisa que não se pode, portanto, acusar o filme é do desconhecimento deste seu estatuto um tanto particular. Exagerado, autocentrado, over, são todos adjetivos que se pode colar a ele sem muito medo de errar. Mas, se Corran parece evidentemente sabedor do filme que faz (“it's only a movie”, vai dizer a personagem de Gwyneth Paltrow logo no início), da falsidade que emana dele, o que ele não parece saber é como adequar esta sua autoconsciência, emuladora de tanta coisa diferente, com um discurso narrativo minimamente interessante.

O amor de Corran pelo clima e pelo visual que seu filme busca (algo retrô-futurista, que vai se colocar na passagem dos anos 30 para os 40 cronologicamente, mas não num passado exato e sim cinematográfico de uma certa ficção científica) é latente. Neste sentido, seu trabalho lembra muito o de Guy Maddin (cineasta canadense recém-retrospectado na Mostra de SP), que também propõe um mergulho imagético/sonoro num determinado passado inexistente — porque somente do cinema. Mas, assim como acontece em Maddin, a sensação que o espectador tem é que o amor do cineasta pelo ambiente que quer criar é maior do que a capacidade de inserir o espectador na relação com este ambiente. São cineastas, portanto, que soam em vários momentos completamente autistas — como que brincando no seu mundinho próprio que só diz respeito a eles. Neste sentido, o oposto exato seria Peyton Reed em seu Down with Love [2003], que consegue tornar sua reinvenção amorosa de um tempo/gênero cinematográfico algo engajador e vivo.

O problema específico em Corran é que ele não consegue definir os limites entre o que deseja levar a sério e o que deseja tornar risível, e logo a indecisão torna risível o sério e sério o risível. Claro que há um componente de ridículo planejado (a loira irritante de Paltrow perguntando para o cientista no cinema quem será a próxima vítima afinal, depois que ele já deixou bem claro que seria ele), mas este jogo tongue-in-cheek é um de muitos riscos, onde elementos como o elenco, principalmente, precisam estar muito afinados para dar conta do que é sátira e do que é simpatia ao mesmo tempo. Neste sentido, Paltrow e Jude Law levam um banho do casal Ewan McGregor e Renée Zelweggler, de Down with Love. Seus protagonistas em Sky Captain... nos fazem torcer o tempo todo pela (rara) volta à tela dos coadjuvantes Angelina Jolie e Giovanni Ribisi, muito mais integrados ao clima. Suas gélidas atuações além de não nos engajarem nem um pouco no filme, fazem acreditar que, para além da propaganda, o filme não ganha nada tendo atores humanos interpretando os personagens - melhor seria que fossem logo efeitos de computador como todo o resto.

Neste ponto, chegamos à outra questão central de Sky Captain..., claro: sua produção. Boa parte do marketing do filme vem do ineditismo de sua proposta, que realiza uma das profecias tão propaladas desde o início da exploração da computação gráfica: um filme feito de forma completamente virtual, onde só os atores entram com as carinhas num mundo criado em computador (inclusive, com a primeira utilização — ainda que curta — daquela outra profecia do início dos anos 90, a da volta dos atores já mortos à ação: Laurence Olivier “interpreta” o vilão). Claro que, pensando bem, se esta virtualidade era a “novidade” de Tron em 1982 (com outra resolução de ambiência, lógico), não há muito a comemorar — mas, aceitemos o argumento de que o detalhismo e a grandiosidade seriam, então, “a” novidade. O fracasso comercial estrondoso (que lembra aquele de Final Fantasy [2001] — o primeiro filme que usava só computação gráfica para “simular realidade”) mostra que o público se interessa muito pouco por isso tudo (e, no caso de Sky Captain ainda há o agravante do desinteresse do público jovem de hoje pelas referências que o filme busca).

O fato é que, a essas alturas da história do cinema, já sabemos que uma novidade técnica não garante nada em termos de interesse cinematográfico, e Sky Captain parece um daqueles filmes sonoros ou coloridos iniciais em suas respectivas tecnologias: que sabem como fazer, e querem mostrar que podem fazer — só não sabem o porquê de fazerem aquilo que podem fazer. Ou, como disse um crítico americano: a impressão que dá é que Corran sabe tudo sobre filmes de aventura dos anos 40, exceto como fazer um deles.

Sky Captain, cujo destino parece o de ser um auto-escrito verbete de enciclopédia futura (“o primeiro filme a ...”), resulta então é num bizarro produto onde assistir ao filme dá vontade de ver o making of — mas não devia ser ao contrário?
 
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Lista de sci-fi feuilleton no subgênero techno-fiction:
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