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por Jean-Gavril Sluka
DVDClassik/2014
“Há um cara novo na cidade. Seu nome é Paul Verhoeven”. Decidido a se refazer em nova pele, o “violento holandês” instalou-se em Los Angeles no final dos anos 80. A habilidade das suas mises en scène europeias não passou despercebida numa Hollywood que então se preparava para recrutar os mais virtuosos formalistas estrangeiros (como seu cúmplice Jan de Bont, John Woo, mas também mais tarde Tsui Hark e Ringo Lam em incursão no JCVD) ou para abrir espaço para franco-atiradores (De Palma, McTiernan) para o bem maior de um cinema de ação que terá seu apogeu nacional entre o final dos anos 80 e a década seguinte. Verhoeven vê a rolagem do script no momento em que lê o de RoboCop, assinado por dois jovens loups chamados Michael Miner e Edward Neumeier, o campo de gênero onde o filme se encaixa não conheceu a revolução Die Hard [1988] e continua a servir — em um cenário geralmente plano-plano — de receptáculo para o pior, desde que seja bom para lisonjear as expectativas mais desviantes dos ratos de videoclubes. Verhoeven joga fora o roteiro no meio da leitura, vendo-o apenas como um pretexto para mais um delito fascistoide como o que proliferou durante esses anos. Foi sua esposa quem, depois de relê-lo, o encorajou a lhe dar uma chance, enfatizando o caráter irônico de um texto tão excessivo que comporta a própria crítica das suas passagens obrigatórias. Verhoeven então vê o potencial maldoso, o espírito malvado pulp de um cenário deliberadamente instigante e provocador. Ele aceita o projeto com a condição de poder editar o roteiro apenas o suficiente para acentuar ainda mais o seu lado satírico.
Neumeier e Miner são dois anticonformistas com simpatias anarquizantes, politicamente mal articulados ou presos nas contradições ideológicas do libertarianismo à americana. A inclinação destra [direitista] de sua franquia se concretizará, sob a influência de Frank Miller, a partir do segundo episódio [1990]. Equipado com seu cinismo inabalável, Verhoeven se irrita com a imposição aborrecente que emana de seu roteiro, mesmo que isso signifique jogar a cartada too much, quando mais ponderação teria precisamente trazido à tona a interpretação suspeita que poderia ter resultado essa história de vigilante. O filme é produzido pela Orion Pictures (empresa com a qual já colaborou para Flesh & Blood [1985]), ilha de exigência na paisagem norte-americana dos anos 80. A distribuidora de Kurosawa, Wenders e Rohmer no território, produzindo Woody Allen, Coppola e entre os filmes americanos mais singulares da década (Colors [1988], At Close Range [1986], Excalibur [1981], Amadeus [1984], The Terminator [1984]). Basta dizer que estamos muito longe do local de nascimento de Paul Kersey ou dos panfletos anti-bandidos — e, acima de tudo, anti-tudo — estilo Savage Streets [1984]. Com esse primeiro filme americano, Verhoeven autuou com seu virtuosismo toda Hollywood, categoria B ou A, ao assinar um ato de denúncia feroz dos absurdos da época: esta América yuppie servindo prostitutas e cocaína, debilitada pela desinformação, apaixonada pelo consumismo, que só encontra como remédio para o seu próprio laissez-faire o enfraquecimento do laissez-vivre, privatizando todo o domínio público... a começar pelo da segurança, as polícias estaduais sendo impotentes para conter a maré de crime induzida pela pauperização geral. Cápsula do tempo da era Reagan, RoboCop registra este momento crítico quando o liberalismo arrogante se transforma em neoconservadorismo triunfante.
Localizada em Detroit (uma escolha que retrospectivamente tinge o filme com uma certa amargura, dada a forma como a carência econômica desta cidade posteriormente se tornará um símbolo próprio dos sacrifícios do mercado desregulado), a trama se passa nesse lugar fértil para a metalurgia, dominado num futuro próximo não pela produção de automóveis, mas pela de armamentos, enquanto um de seus oligarcas se prepara para construir sobre os escombros deste mundo industrial uma nova cidade, tipo o projeto arquitetônico megalomaníaco à la Albert Speer. No papel, trata-se de conter qualquer forma de delinquência nesta megalópole reservada a uma elite financeira. Para fazer isso — depois que uma trituração com derrapagem sanguinolenta foi relegada — Alex Murphy (Peter Weller), um oficial público morto a tiros durante o exercício de suas funções, é trazido de volta à vida na forma de um ciborgue programado para fazer reinar a ordem nos bairros. Foi muito rápido esquecer a parte meio-humana de uma criatura mecânica que se verá assaltada de memórias de sua vida passada — e de sua execução pelos ladrões que ele estava perseguindo em particular. Ao começar a rastreá-los, a trilha deles o levará a uma criação de sua própria empresa, a apropriadamente chamada Omni Consumer Products. Murphy então encontra a si mesmo para RoboCop, programado para não ser capaz de se voltar contra um superior em sua empresa. Não se poderia mostrar melhor a aberração das forças policiais economicamente subservientes aos interesses de um grupo privado, bem como a conexão objetiva entre o crime organizado e a plutocracia (Kurtwood Smith como um bruto sádico e pervertido, Ronny Cox em ponto despojado da menor consideração exigida por sua posição).
O filme desdobra em sua tela brutal uma estética do pior, Verhoeven se divertindo como um doidinho moendo as profundezas do lixo cultural dos eighties, tais lugares idiotas que deliciam todos os publiphobes e que anunciam, além do mergulho no inferno do lixo televisivo de Natural Born Killers [1994], os divertimentos satíricos à la Ben Stiller ou Adam McKay — ou mesmo essas reportagens prontas para encorajar sem o menor caso de consciência um regime de apartheid ou um golpe militar na América do Sul, que mesmo diante da morte de centenas de pessoas não pôde abandonar sua arrogância sorridente e oportunista. (Verhoeven e Neumeier levarão a obscenidade um passo adiante em Starship Troopers [1997]). Bombas cardíacas da marca Yamaha, jogos familiares baseados em cataclismos nucleares, motos sensacionalistas (“Eu compraria isso por um dólar!”), um grau zero de cultura na sociedade de consumo que dificilmente é derrotado em termos de indecência por esta moda estadunidense: o fascínio pelas armas de fogo. RoboCop demonstra — de uma forma certamente não muito exagerada — como a indústria de armamentos dá o tom para a política da bandeira das estrelas. Todas as situações de crise aqui se relacionam, além disso, (antes) perto ou (nem tão) longe, da posse generalizada de instrumentos de morte.
Verhoeven filma uma sociedade em verdadeiro estado de regressão (um padrão recorrente, dos rangidos de bebê de um robô gigante, caído de costas numa escadaria, ao mingau infantil que sustenta a máquina RoboCop). Um país onde a força bruta substituiu todas as demandas políticas e sociais. Uma nação que legou sem esperança seu futuro para os poderes do dinheiro e cuja vida diária das massas é gradualmente reduzida a uma subsistência primitiva, uma alienação feliz e estúpida, personalidades semelhantes a macacos. Aqui, podemos culpar parcialmente o reacionário de esquerda Verhoeven por cuspir como um recém-chegado na sopa. Queixa fundamentada até certo ponto, mas da qual ele se esquiva de sua maneira não negligente. Longe de brincar com indignações virtuosas, ele defende até o absurdo a linha do que acusa, fazendo da ação histérica sua própria paródia — e isso, sem os efeitos de nichos condescendentes que às vezes lhe são atribuídos ao abordar sua carreira americana. É literalmente impossível não entender a ironia do filme, que, no entanto, nunca faz mais do que aplicar à la lettre o comando hollywoodiano.
Todo o jogo de Verhoeven consiste precisamente em não tomar os cuidados que os outros se imporiam com o mesmo material em mãos, mas, pelo contrário, em cavar todas as asperezas desconcertantes. Então, com seu uso do gore (é preciso, como de costume com o cineasta, ver o filme em sua versão não editada de seus excessos de hemoglobina, que é exatamente o oposto de gratuita), que vem a uma violência televisiva asséptica. Ao mesmo tempo no cinema americano, Carpenter com They Live [1988] desenvolve o mesmo programa contra a brutalidade midiática servidora da casta yuppie, assim como lá também há um alegado uso da brutalidade encenada como real. Mas onde Big Daddy John assume a posição de fora, de alegada independência, Verhoeven ataca a inanidade em seu próprio campo de jogo. Postura insustentável que ele paga eventualmente, mas muito divertida para que o jogo não valha a pena. O melhor de RoboCop — o menos desesperador também — se deve a esse gosto farsesco, uma atitude de criança má que não leva mais nada nem ninguém a sério e certamente não são maus jogadores, aqueles que gritam alto quando são lembrados de que o jogo até agora beneficiou apenas eles e eles próprios.
Um elogio a esse filme rebelde e vital deveria, é claro, evocar outras de suas características. Sua parte discretamente mística, onde a execução de um policial é filmada como uma paixão e que depois acumula alusões crísticas à iconografia religiosa (o famoso posto de gasolina Hell em uma explosão, o robô caminhando sobre o água...), Verhoeven iniciando aqui modestamente uma iniciativa de desvelar a formação da gerência protestante ao republicanismo norte-americano. Sua feliz congruência de tantos talentos: um elenco impecável de papeis secundários (incluindo para a anedota vários futuros atores da série Twin Peaks [1990-1991]), a composição de Basil Poledouris, a maquiagem e os trajes de Rob Bottin para uma criatura passando da funcionalidade à fragilidade, Phil Tippett como hospedeiro de ED 209 (robô-mecha a quem devemos no massacre de um protagonista a mais hilária inépcia que se pode imaginar), a fotografia nítida de um habitué nos sets holandeses do diretor (Jost Vacano). Sua virtuosidade nunca foi negada, na câmara rústica, atrás da qual podemos sentir um realizador feliz por fazer o uso mais aéreo dos meios à sua disposição. Seu casal estrela: o olhar calmo e azulado de Peter Weller e a ágil androginia de Nancy Allen (uma atriz se libertando de sua usual tipificação sexy), a inocência que emana de seu jogo como o último vestígio de humanidade. Ironia salutar, típica de seu autor: tomar como postulado aquele por excelência de filmes autoritários, viris, e torná-lo seu campo eleito para uma infância da mise en scène de seu período americano. O mesmo frescor, o mesmo prazer a cada visão, retomando, sorriso no canto... “Tem um cara novo na cidade. Seu nome é RoboCop”.
= = =[0] Tradução de Paulo Ayres.
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