quarta-feira, 10 de abril de 2024

Cidade pequena

Uma Quase Dupla
 
(comédia,
BRA, 2018),
de Marcus Baldini.
 


por Paulo Ayres

Na formação de padrões e tendências temáticas das ficções, saber reorganizar os lugares-comuns e os estereótipos é mais importante do que tentar evitá-los. Ao menos, quando se trata de sátira. Quando se trata de sátira edificante, então, isso é fundamental para estabelecer uma identidade que faça ela persistir na memória no meio da enxurrada de obras lançadas constantemente — pois, como é fácil notar na maioria das vezes, grande parte das ficções do mundo são de arte edificante. É aí que se constata que Uma Quase Dupla tem sucesso no que propõe, mesmo não se tornando um filme famoso, bastante comentado. Se buddy movie — e mais precisamente buddy cop — é um chão pisado, repisado, principalmente no império ianque, é necessário não apenas abrasileirar os códigos como também situá-los em terreno que possam garantir alguma metalinguagem ou instrumentalização para refletir outra coisa.

O cenário é a alma de Uma Quase Dupla. A ideia é a seguinte: pegar dois temas dos mais usados na ficção criminal — a dupla de tiras se estranhando de início e a investigação sobre um assassino em série — e situá-los numa cidadezinha. A fictícia Joinlândia, deste modo, introduz no enredo uma série de determinações que oferecem reflexos distintivos do que se costuma ver em filmes assim, pois trata daquilo que é peculiar às cidades de pequeno porte na hierarquia das urbanizações. Mas, é claro, para haver um contraste salientado é preciso de um olhar de fora para gerar o estranhamento e isso a própria protagonista oferece: Keyla é uma policial do Rio de Janeiro que está naquele lugar para investigar o homicídio estranho. A performance “cheirada”, ligada no 220, que é característica de Tatá Werneck, garante o timing cômico, tendo Cauã Reymond cumprindo bem o papel de escada. Cláudio é um policial ingênuo, mimado pela mãe, que não acredita que o assassino possa ser um conterrâneo seu.
 
Há uma dose de ingenuidade e de simplicidade no clima interiorano retratado, é verdade, mas isso se dá porque a escala de urbanidade revela como as relações sociais tendem a variar seu círculo de empatia dependendo do tamanho do local — pelo menos, essa é a dinâmica da civilização como sociedade de classes. Os habitantes de Joinlândia se conhecem bem, estão a um passo do círculo comunitário, quase familiar, mas desempenham funções laborais que os separam em determinados protocolos de convivência, inclusive em contradições classistas. A mystery comedy, nesse sentido, segue uma linha de investigação em que a coleta de pistas e informações é, ao mesmo tempo, a interação intensa com a rotina da própria cidade. O cineasta  Marcus Baldini explora bem os espaços desse percurso investigativo, simulando as cenas de crime que se vê geralmente nessa temática ficcional dentro da caracterização interiorana. No final, entretanto, o videoclipe que celebra a instituição policial como um fetiche afirma que essa devoção ao material passou a linha em que a satirização se torna uma discreta apologia.
 
Por mais que tenha a identidade cinematográfica como a personalidade extravagante de Keyla, Uma Quase Dupla mantém a ingenuidade que mostra em Cláudio. Esse tom binário, pela temática, lembra a divisão antidialética feita pelo sociólogo alemão Ferdinand Toennies entre a inautêntica e artificial “sociedade” e a autêntica e solidária “comunidade”.

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