(dramédia,
USA, 2016),
de Morten Tyldum.
por Paulo Ayres
Para além das suas insuficiências por ser um drama edificante de amor, Passengers tem um aspecto muito bem-vindo e que não é comum de se ver em ficções científicas. O roteiro estabelece o uso não metafórico das relações entre humanos e máquinas sem cair no fetiche da tecnologia. Uma cena que simboliza isso é o tapa na cara que Jim Preston (Chris Pratt) dá no androide Arthur (Michael Sheen), tentando fazer o seu interlocutor entender que eles dois possuem níveis ônticos distintos.
Passengers, ademais, se insere entre as obras que comentam a tendência alienada da exploração espacial via mercado, que tem ganhado destaque recentemente com alguns bilionários torrando fortunas numa corrida espacial paralela. Assim como The Space Between Us (2017), é uma dramédia espacial estadunidense sobre a iniciativa privada em órbita, porém com uma dose maior de mordacidade. Na longuíssima viagem da nave dormitório Avalon (120 anos, transportando 5258 indivíduos sociais em hibernação), a tecnologia futurista apenas incrementa uma estratificação de classes, a nossa forma de apartheid, mais ou menos camuflada e “suavizada”, de cada dia. Nesse sentido, tal como o Titanic (1997) de James Cameron, o norueguês Morten Tyldum comanda um drama em que o foco na exaltação romântico-amorosa coexiste com um reflexo lúcido das contradições da moderna desigualdade social. Nessa metáfora ficcional, o capitalismo continua dando as cartas até na viagem galáctica e na exploração — nos dois sentidos do termo — de outros planetas; ou novas colônias, para ficar na linguagem própria do liberalismo e seu desenvolvimento histórico de parasitismo mercantil.
Enquanto isso, lembrando o bartender fantasmagórico de The Shining (1980), o bartender robótico é apenas mais uma máquina na nave recebendo uma determinação programada que, por mais flexibilidade de interação que forneça, é um apêndice de objetivações pré-fabricadas, isto é, um instrumentum vocale, de fato — bem diferente da situação em que conservadores classificam assim a parte assalariada do ser social (Edmund Burke) ou fazem apologia explícita do retorno da escravidão (Friedrich Nietzsche). O suposto servidor de bar chama a atenção, em meio à maquinaria, apenas por sua aparência humanoide da cintura pra cima. Essas inteligências artificiais, nesse nível apresentado e que espelha as que temos no presente, não realizam atividades sociais e nem a básica entre elas: a atividade fundante que agrega novos valores de uso à sociabilidade. Em suma, não são servidores, são dispositivos de autosserviço. Passengers é sagaz, inclusive, ao enfocar o personagem Jim Preston como um engenheiro mecânico, para contrastar a capacidade da sua interação intencional com aquela interatividade pré-definida e não teleológica em sua execução. Portanto, só pode ser visto como uma fina ironia quando a escritora Aurora Lane (Jennifer Lawrence) diz que sente inveja daquela máquina, com aparência de pessoa, por ela ter um propósito na vida. Afinal, trata-se de um “trabalhador” ali servindo bebidas tanto quanto é um trabalhador um boi que puxa arado.
Falar sobre a solidão específica do mundo capitalista até virou um clichê, mas Passengers, apesar de sua limitação semirrealista, sabe como fazer isso com desenvoltura.
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Lista de sci-fi dramedy no subgênero space fiction:
[0] Primeiro tratamento: 13/10/2021.
[0] Primeiro tratamento: 13/10/2021.
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