sexta-feira, 3 de maio de 2024

Interação teleológica

Passengers
 
(dramédia,
USA, 2016),
de Morten Tyldum.
 
 

por Paulo Ayres

Para além das suas insuficiências por ser um drama edificante de amor, Passengers tem um aspecto muito bem-vindo e que não é comum de se ver em ficções científicas. O roteiro estabelece o uso não metafórico das relações entre humanos e máquinas sem cair no fetiche da tecnologia. Uma cena que simboliza isso é o tapa na cara que Jim Preston (Chris Pratt) dá no androide Arthur (Michael Sheen), tentando fazer o seu interlocutor entender que eles dois possuem níveis ônticos distintos.

Passengers, ademais, se insere entre as obras que comentam a tendência alienada da exploração espacial via mercado, que tem ganhado destaque recentemente com alguns bilionários torrando fortunas numa corrida espacial paralela. Assim como The Space Between Us (2017), é uma dramédia espacial estadunidense sobre a iniciativa privada em órbita, porém com uma dose maior de mordacidade. Na longuíssima viagem da nave dormitório Avalon (120 anos, transportando 5258 indivíduos sociais em hibernação), a tecnologia futurista apenas incrementa uma estratificação de classes, a nossa forma de apartheid, mais ou menos camuflada e “suavizada”, de cada dia. Nesse sentido, tal como o Titanic (1997) de James Cameron, o norueguês Morten Tyldum comanda um drama em que o foco na exaltação romântico-amorosa coexiste com um reflexo lúcido das contradições da moderna desigualdade social. Nessa metáfora ficcional, o capitalismo continua dando as cartas até na viagem galáctica e na exploração — nos dois sentidos do termo — de outros planetas; ou novas colônias, para ficar na linguagem própria do liberalismo e seu desenvolvimento histórico de parasitismo mercantil.
 
Enquanto isso, lembrando o bartender fantasmagórico de The Shining (1980), o bartender robótico é apenas mais uma máquina na nave recebendo uma determinação programada que, por mais flexibilidade de interação que forneça, é um apêndice de objetivações pré-fabricadas, isto é, um instrumentum vocale, de fato — bem diferente da situação em que conservadores classificam assim a parte assalariada do ser social (Edmund Burke) ou fazem apologia explícita do retorno da escravidão (Friedrich Nietzsche). O suposto servidor de bar chama a atenção, em meio à maquinaria, apenas por sua aparência humanoide da cintura pra cima. Essas inteligências artificiais, nesse nível apresentado e que espelha as que temos no presente, não realizam atividades sociais e nem a básica entre elas: a atividade fundante que agrega novos valores de uso à sociabilidade. Em suma, não são servidores, são dispositivos de autosserviço. Passengers é sagaz, inclusive, ao enfocar o personagem Jim Preston como um engenheiro mecânico, para contrastar a capacidade da sua interação intencional com aquela interatividade pré-definida e não teleológica em sua execução. Portanto, só pode ser visto como uma fina ironia quando a escritora Aurora Lane (Jennifer Lawrence) diz que sente inveja daquela máquina, com aparência de pessoa, por ela ter um propósito na vida. Afinal, trata-se de um “trabalhador” ali servindo bebidas tanto quanto é um trabalhador um boi que puxa arado.

Falar sobre a solidão específica do mundo capitalista até virou um clichê, mas Passengers, apesar de sua limitação semirrealista, sabe como fazer isso com desenvoltura.

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Lista de sci-fi dramedy no subgênero space fiction:
[0] Primeiro tratamento: 13/10/2021.
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