segunda-feira, 27 de janeiro de 2025

Bens usados

E.T. the Extra-Terrestrial 
 
(dramédia,
USA, 1982)
de Steven Spielberg.
 


por Paulo Ayres

Dentro da longa filmografia de Steven Spielberg, E.T. the Extra-Terrestrial não é só o filme mais emblemático do seu estilo artístico, mas também — e isso é bastante sintomático — um dos momentos mais sérios e reflexivos de sua carreira. Essa dramédia de ficção científica geralmente é lembrada apenas como a coroação de Spielberg no posto de diretor estadunidense mais célebre e, consequentemente, de arquétipo de “o cineasta” na cultura pop mundial, concluindo uma trindade modelo do novo cinema arrasa-quarteirão após Jaws (1975) e Raiders of the Lost Ark (1981). Porém, o que destaca E.T. em meio às ficções edificantes do diretor, inclusive os seus dramas superestimados — como Schindler's List (1993) e Saving Private Ryan (1998), que receberam prêmios de melhor direção no Oscar — é a transparência de um enredo doméstico e suburbano que gera um olhar mais subversivo em relação à sociedade na qual ele vive.

E.T. revela uma paisagem acolhedora e amedrontadora ao mesmo tempo, capta parcialmente a dialética de sedução e repulsa do contexto histórico em que se passa. A fotografia sóbria de Allen Daviau realça a monotonia de um subúrbio pequeno-burguês, as partículas no ar destacam os contrastes da iluminação, e, junto a isso, a bela música de John Williams consegue o ponto de equilíbrio entre a marcha aventuresca e o maravilhamento melancólico. A casa de Elliot (Henry Thomas), local em que se passa a maior parte da história, é mostrada como um pequeno mundo a ser descoberto pelo olhar do alienígena e também pelo nosso. Um ambiente abarrotado de quinquilharias e eletrodomésticos. Há uma sensação de empilhamento de coisas, desde as roupas do pai que deixou o lar e está no México (a ausência paterna é como um fantasma na casa) até o soterramento do hóspede secreto em meio a bonecos e bichos de pelúcia. Uma grande ironia, aliás, é que o próprio E.T. é engolido pela indústria do entretenimento e será mais uma imagem licenciada, um souvenir, um bicho de pelúcia etc. Ou seja, a trama, que fala do acobertamento do visitante fugindo das autoridades e técnicos dessa sociedade, indica também a fuga do aparato que quer pegar o E.T. e moldá-lo como quinquilharia vendável, afinal a gente supõe que a repercussão do alien dentro desse universo ficcional foi até maior que a grande repercussão do produto no nosso mundo (o filme acaba no momento em que o extraterrestre vai embora e só imaginamos como foi a vida cotidiana após esse evento tornado público).

Nesse sentido, não temos uma invasão alienígena bem ao gosto da ficção científica norte-americana, com criaturas horripilantes e o fetiche gore — como The Thing, um folhetim que John Carpenter lança no mesmo ano de 1982. O invasor, quem diria, é o governo dos Estados Unidos. O contraste entre a força burocrática e tecnocrática com o suburb fica nítido, pois esse último emerge na imagem como um oásis de resistência cercada pelos morros de San Fernando Valley. E perseguindo os vestígios do extraterrestre, aos poucos esses “estranhos” seres vão adentrando a vizinhança e a casa familiar. É bem interessante a maneira como Spielberg os filma, até certa parte como uma ameaça sinistra, objetos não identificáveis no escuro ou ângulos da cintura pra baixo, com diálogos distantes num tom formal e tecnicista. E quando descobrem o paradeiro do alienígena, os EUA marcham no horizonte de maneira pomposa, num pôr do sol alaranjado, aproximando-se da residência. Não vemos rostos ainda; são silhuetas, carros de polícia e tubos sendo rolados. O ápice desse suspense de invasão e a cena mais aterradora do drama é, ironicamente, o cerco dos “astronautas” (vestidos como tais, com direito à bandeira ianque no ombro) desbravando o lar — de uma maneira diferente da que foi feita pelo E.T. na primeira parte —, para, a partir daí, transformar a casa num laboratório improvisado.
 
Entretanto, não se trata apenas da dicotomia liberal entre o estado e a sociedade civil, o choque que E.T. transmite é de um nível mais profundo. A racionalidade formal não é representada apenas por agentes do governo, policiais, cientistas e médicos: a sequência na escola de Elliot já revela, através da proposta de enquadramentos, como ali o representante do poder institucional e do “mundo adulto” é o professor, que não vemos o rosto. Deste modo, a figura da mãe (Dee Wallace) ilustra, desde o início, a mediação entre os mundos afetivo e laboral. Por isso a vemos de corpo inteiro e por isso ela não enxerga o hóspede de sua casa. Sua distração insinua a cabeça adulta cheia de problemas e, consequentemente, a sua absorção parcial no racionalismo formal. Na parte final desse drama edificante, com efeito, as autoridades, médicos e cientistas mostram os rostos, conversam com a família; não são monstros, são figuras humanas, mas isso não muda o fato de que os novos hóspedes estão mais para parasitas e o lar se torna um hospedeiro. A sutileza dessa subversão spielberguiana da sci-fi e da visão dos Estados Unidos engrandece o filme. A casa cheia de trecos afetivos da ideologia consumista se torna uma casa cheia de trecos técnicos da organização gerencial, que dá suporte à ideologia consumista.
 
O conflito se agudiza pela falta de mediação. É por isso que em E.T. a revolta é salientada como reparadora. As crianças se tornam anarquistas. Elliot se embebeda indiretamente através da ligação telepática que mantém com o alienígena, quebra protocolos na escola e se afirma como uma espécie de ativista ecológico ao libertar os sapos que seriam dissecados na sala. Um esboço do plano transgressor de libertação do amigo extraterrestre. O viajante interplanetário, por sua vez, é um ser social que tem uma conexão especial com o crisântemo de um vaso, expressando a nossa conexão com a natureza, tão degradada no capitalismo tardio. O Cristo new age ressuscita (ou quase isso, se é que tinha morrido mesmo) trazendo a nova mensagem de resistência mesclada com a preocupação ambiental, temperada por uma dose de panteísmo. Nesse sentido, os seus seguidores em fuga costuram a cidade com as bicicletas, o meio de transporte da simple living, e o comunicador que o alien constrói é feito de partes aproveitáveis; quase uma reciclagem que dá um sentido novo para certas bugigangas que encontra na casa.

Apesar de haver a ótima sequência da perseguição e a polêmica da blitz — com o emblema governamental e as armas de fogo à espreita —, no fim das contas, o coração luminoso e pulsante se sobressai. Fica para trás a imagem de Elliot sendo conduzido pelo braço à sala do diretor escolar. O clima triunfante se afirma. Nesse aspecto, é distinto de First Blood (1982), tríler do mesmo ano, pois uma abordagem realista é a que enfatiza que toda transgressão termina por ser absorvida, penosamente, pelo establishment capitalista — ou seja, o anticapitalismo romântico sucumbe no fim, como era de se esperar no seu confronto com a racionalidade formal. Em Catch Me If You Can (2002), outra dramédia, Spielberg aprende essa lição, porém, não abre mão do tom romantizado de aprendizagem. Em E.T., por outro lado, não há um depois da euforia. O roteiro é estruturado num tom crescente rumo à apoteose do voo e da despedida. O ambiente incontornável é suspenso tal como o êxtase de um ritual religioso, havendo até a apelativa presença do pai para ver a ascensão aos céus. Diferente do instigante Halloween comunitário, que Spielberg filma como mais uma estranha ritualização do cotidiano para os colecionadores de coisas e momentos fotografáveis.

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[0] Primeiro tratamento: 20/03/2021.
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