segunda-feira, 31 de março de 2025

Boa influência

 Le Gamin au Vélo 
 
(tragédia,
BEL/FRA, 2011)
de Jean-Pierre
& Luc Dardenne.


 
 por Paulo Ayres

Sem abrir mão da objetividade cênica que é típica da tragédia audiovisual, o cinema dos irmãos Dardenne busca em Le Gamin au Vélo um acompanhamento psicológico, em sentido estético, do menino protagonista de doze anos, traduzindo em gestos e poucas palavras o que se passa com essa subjetividade. A câmera dos diretores belgas, então, fica bem próxima de Cyril Catoul (Thomas Doret) e recua em planos médios e abertos para não se fechar na perspectiva estrita. Cyril não para quieto e seu deslocamento impetuoso é o objeto estético em análise. Ou melhor, é uma proposta dramática de entender um comportamento por observação.

A abordagem humanista dos Dardenne, no entanto, impede que a mimese crua seja do tipo clínica, distanciada, isto é, naturalista. Nesse sentido, não importa para o filme que esse piá irrequieto tenha déficit de atenção, ansiedade aguda, depressão ou outra coisa. Importa, antes de tudo, o conjunto das relações sociais que formou sua especificidade enquanto indivíduo. Como Le Gamin au Vélo faz questão de informar pela sutileza de gestos, poderia se especular se a bicicleta tem algum significado para o personagem. O que se pode perceber é que a bicicleta lhe proporciona um deslocamento canalizado, uma atividade física que é sua manobra parcial de liberdade. E ele encontra uma direção, a base de apoio afetivo e a cumplicidade familiar em Samantha (Cécile de France) — a sequência conciliatória dos dois andando com bicicletas, lado a lado, indica essa interpretação. O ponto básico está dado desde o início. Cyril parece não saber o que fazer para se sentir integrado ao meio, buscando aceitação não só afetiva como prática. Rejeitado pelo pai cozinheiro (Jérémie Renier), único parente direto, e largado num orfanato, o garoto tenta ser prestativo de alguma forma para ser aceito, seja mexendo duas panelas ou levando dinheiro roubado para o genitor.
 
Pressionada pelo namorado entre maternar ou leitar, Samantha decide pela primeira opção. Da cabeleireira pouco sabemos sobre a trajetória de vida. Isso não seria problema, a princípio, pois o foco é Cyril mesmo; mas a maneira como ela é colocada como um porto seguro que ele se agarra, literalmente no início, retira um pouco da força de atrito que deveria refletir uma relação com complexidade em ambos os polos. Também não é problema que a personagem reprove, de cara, o jovem criminoso Wesker (Egon Di Mateo). O problema é o olhar narrativo, o dos autores, insinuar que o garoto mais velho, visualmente um “delinquente” clichê, seria um tipo de Cyril que está numa fase quase irrecuperável. Trocando em miúdos, uma “má influência”, que traz uma pequena dose de maniqueísmo, típico de drama edificante.
 
É interessante, no desfecho, o modo como a perspectiva protetora se inverte com as duas vítimas do crime, um pai e seu filho. Le Gamin au Vélo enfatiza o sentimento de culpa. A tragédia fecha seu diagnóstico de maneira irônica e ensolarada.
 
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