por Paulo Ayres
Hill Valley, Califórnia, 21 de outubro de 2015. A data que Marty McFly (Michael J. Fox) esteve no futuro e depois retornou ao seu tempo. Uma data que virou um evento cinéfilo e nerd, pois faz referência à data exata em que uma das trilogias mais famosas do cinema decide mostrar o suposto futuro que nos aguardaria. Obviamente, o futuro espantoso — para o espectador do período e para Marty chegando na praça central da cidade pequena — não se realizou, nem aproximadamente na sua tecnologia. E é até compreensível que, quando a data finalmente chegou, a cultura pop tratou do assunto, inclusive com vídeos mostrando o que chegou perto, o que passou longe naquela paisagem fantástica, e, também, como seria se tivesse acertado nesse ponto. Enfim, isso é um exercício compreensível na análise posterior de uma “futurologia” da arte ficcional. É algo distinto de, em face disso, julgar que o filme está “errado”, falhou, e é uma ficção científica sem importância de conteúdo. Essa viagem ao futuro não é uma viagem na maionese. Ironia das ironias: do presente ao passado, há um terreno seguro para um reflexo estético, entretanto, é nessa especulação de filme do meio, claramente transitório, que Robert Zemeckis espelha a essência da nossa época. Enquanto a primeira (1985) e a terceira (1990) partes da saga são sátiras edificantes, Back to the Future II é uma sátira realista.
Sabendo da história da produção dos filmes, de como foi a ideia de fazer uma trilogia, o fato fica ainda curioso, pois há um espaço criativo e de recepção cultural entre o primeiro e os demais. Back to the Future emerge e se afirma como obra destacada em 1985 e o gancho final, viajando trinta anos no futuro, era apenas uma brincadeira, segundo os realizadores. A decisão de fazer uma trilogia vem posteriormente. Zemeckis lança Who Framed Roger Rabbit (1988) e, em seguida, realiza as duas continuações do filme que o consagrou enquanto cineasta. Ou seja, é mais comum ver o panorama das sequências como um “filmão” fatiado em duas partes tentando fazer jus ao estilo marcante do primeiro.
Mesmo sendo concebido como uma ponte, Back to the Future II tem uma existência própria enquanto totalidade e seu valor estético está nesse dado ôntico de um complexo singular. E, além disso, é bom frisar que seu diferencial qualitativo está em ser uma totalidade aberta. Zemeckis e o roteirista Bob Gale dividem a techno-comedy de 1989 em três atos e só no primeiro temos o futuro especulativo. A direção de arte e o figurino fazem o ambiente de Hill Valley com uma extravagância proposital. Cada detalhe na geografia multicolorida parece acenar para chamar a atenção — desde as duas gravatas do Marty do período até “Jaws 19”, de Max Spielberg, que não veio, mas a tendência de muitos filmes de tubarão na eco-ficção se afirmou. Os efeitos visuais de Back to the Future II primeiramente enfatizam os carros voadores e, depois de uma pancada de chuva, o “palco” estranho nos é apresentado. Há uma reprodução das linhas gerais encontradas no bullying e na perseguição do primeiro filme, dessa vez com skates flutuantes. Contudo, é no bairro afastado da casa de Marty, tornado mais “periférico” no seu desenvolvimento, que a comédia começa a se aprofundar cada vez mais. Jennifer Parker (Elisabeth Shue) e Marty, com quarenta e sete anos de idade, possuem uma vida monótona, sem o brilho do comercial de margarina que imaginavam e o filme original enfatiza no fim. Zemeckis, nessa parte, usa toda sua habilidade de filmagem dinâmica, bem marcada em movimentos de corpos no quadro, para introduzir uma família nuclear acostumada não só às máquinas mirabolantes, mas à vida cotidiana limitante e “de ponta cabeça” da nossa forma de sociabilidade. Michal J. Fox, interpretando os dois filhos de Marty — Junior e Marlene —, conclui esse desencanto, que termina em demissão.
Perde o melhor do filme quem tenta teorizar sobre as frases do paradoxo do espaço-tempo ou tenta entender como o velho Biff Tannen (Thomas F. Wilson) volta para o 2015 de antes se ele mudou o passado, criando uma linha do tempo alternativa. Isso não é o foco satírico desse espelhamento do processo histórico, mas apenas acessórios. O segundo ato é quando um “inferno” urbano de cidade grande se estabelece em Hill Valley. O presente, quem diria, tem também um caráter distópico — lembrando que o presente do enredo é 26 de outubro de 1985, mesmo a segunda comédia sendo lançada em 1989. Saímos da visão pacata, quase utópica, de cidadezinha romantizada, e o contraste forte se ergue, como o edifício luminoso do Biff Tannen bilionário. Ali, junto das contradições familiares e sua fachada cosmética, as contradições do domínio capitalista têm um contorno sombrio.
Por fim, o ato final é a ideia, não só criativa como profanadora, de retornar a 12 de novembro de 1955, concretizando um retorno duplo ao tempo em que Lorraine Baines (Lea Thompson) é uma estudante solteira. Não altera os aspectos fundamentais do “sagrado” filme original, mas o realismo artístico acompanha com um olhar distinto os acontecimentos do dia que há um baile colegial à noite. Aliás, o primeiro e o terceiro filmes são, em certo nível, duas sátiras edificantes de amor. Em Back to the Future III, inclusive, é o Dr. Emmett Brown (Christopher Lloyd) que encontra uma namorada e o plot tem esse eixo afetivo. Back to the Future II, em outra frequência, observa as convivências cotidianas, as trajetórias de vida, em universos alternativos, através de um olhar narrativo com um distanciamento bem estabelecido. O estilo de espionagem da dupla protagonista indica esse tom bem calculado.
O almanaque de resultados esportivos pode até ser queimado, mas essa vitória parcial não representa uma lição de moral para Marty McFly, que só vem no episódio seguinte. A tempestade é literal e metafórica, havendo também uma luz no fim daquele túnel. O duplo retorno não é circular, mas uma espiral em movimento. Reflete, nas entrelinhas, a insistência cotidiana que leva ao mesmo ponto, mas com atitudes e percepções que acumulam uma determinada experiência, expandindo o horizonte subjetivo, em meio às variações da realidade objetiva.
= = =Lista de sci-fi comedy no subgênero techno-fiction:
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