sábado, 29 de março de 2025

Cuidado parental

  Mania de Você

(folhetim,
BRA, 20242025)
de João Emanuel Carneiro.
 
 

por Paulo Ayres

Quando Mania de Você começou não se poderia prever que sua segunda fase teria a afirmação mais enfática de uma nova fase da dinâmica das novelas — assim, como Volta Por Cima (2024–) e Garota do Momento (2024–); expandindo o próprio modo de feedback do ato de realizar essa categoria de ficção televisiva. Como se sabe, o autor de telenovela funciona como um maestro conduzindo uma orquestra de núcleos — e, em especial, a tradição brasileira faz uma costura de muitos núcleos. Há alguns meses planejados para o desenvolvimento ser concluído, com a audiência, os comentários e as críticas sendo elementos que interferem no processo criativo. João Emanuel Carneiro, com Avenida Brasil (2012) já havia feito uma das obras mais destacadas do formato, com Mania de Você, o feito se repete de certa maneira.
 
A primeira semelhança que se nota em alguns folhetins criminais do autor é um desejo de deixar em suspenso certas afirmações como viradas decisivas que mexem com a própria percepção do conjunto. Com A Favorita (2008–2009), por exemplo, o elemento central de início aparece na indefinição de quem é a heroína e quem é a vilã, e só com um tempo estabelecer isso. Mania de Você, por outro lado, destaca um núcleo de vilões, a partir da segunda fase, com uma ênfase satírica bem forte. E a grande ironia proposta é que se trata de um núcleo familiar em que os negócios escusos e as relações afetivas estão imbricadas. Um afago aqui, uma facada nas costas acolá. Ou seja, não tem a estrutura de famiglia da máfia e seu código de lealdade, mas uma instabilidade com um cinismo de alto nível. Deste modo, Adriana Esteves não repete algo como a Carminha de Avenida Brasil; Mércia é um tipo de pilar, blasé e com uma ânsia familista, que procura manter a coesão desse núcleo social. Um dado curioso é que nem seu parceiro Ramiro Molina (Rodrigo Lombardi) e nem os “filhos” Mavi (Chay Suede) e Luma (Agatha Moreira) conseguiram intimidar a burguesa como a participação especial de outra megaempresária, a efusiva Magda Mendonça (Débora Lamm), querendo comprar seu resort, o Albacoa.
 
O feito da temporada na produção de novelas da Globo, que Mania de Você, impulsiona, é a intensidade e a rapidez de dialogar com certas fontes popularizadas no momento e significar e ressignificar o folhetim de acordo com um jogo de referências, que refletem um jogo de expectativas. Um mergulho na significação indireta, como pode insinuar a abertura aquática com a canção homônima de Rita Lee, interpretada por Anitta.
 
É como se, além dos costumeiros escritores colaboradores, Carneiro contasse com um departamento de RH, indicando opções, na medida do possível, de fazer giros nos núcleos e trazer determinados temas com desenvoltura, e também deslocá-los de modo a não afetar a linha que sustenta cada parte. Esse espelhamento está até na direção artística de Carlos Araújo, introduzindo, gradualmente, o tema das câmeras escondidas, da espionagem organizada por Mavi, para a própria encenação. A forma dos planos recebe, às vezes, alguma injeção de ângulos inusitados, inclinações com tensão, olhar de fora, desfocamentos parciais e discretos, além de mensagens de fundo; enfim, uma aclimatação com uma porção de metalinguagem, sem fazer disso um fim em si mesmo — embora certo giro de personagens exagerou na dose de café.
 
Curiosamente, o segundo núcleo familiar mais destacado em Mania de Você apresenta esquemas de golpismo feito por “peixes pequenos”, mas chama a atenção pela maneira mais discreta e divertida. Uma família que se rompe e se conserva. Edmilson Carvalho (Érico Brás) se sobressai como uma espécie de Homer Simpson brasileiro que encarna uma malandragem boemia. E a ideia da filha chantagista de pensões, Lorena (Liza Del Dala), também é de fina ironia. Há até uma aprendizagem moral para Edmilson, mas como um agregado desgarrado que, além disso, reflete a tendência de pobres convivendo em puxadinho e similares na residência. Merecia uma série própria. Essa família é muito unida... de um jeito diferente daquele da Mércia e mais ousada que a da série comediesca A Grande Família (2001–2014).
 
Em terceiro lugar na sátira edificante, mas não menos importante, uma aliança interclassista do lumpesinato criminoso, com a parceria entre a dondoca safada Ísis Cavalcanti (Mariana Ximenes) e a empregada doméstica Leidi (Thalita Carauta). Picaretagens que mostram que a dimensão lúmpen é uma espécie de sombra na sociedade e pode unificar camadas distintas de acordo com um jogo de interesses. Às vezes, a diferença é epidérmica, de etiquetas, num perde-ganha que transfere valores entre diferentes contas. Algo em outro tom é a ascensão de Viola Silva (Gabz), carregando o foco e o fardo de ser a mocinha, ela coloca um pé na lama — ainda mais com a “bengala” do roteiro sobre uma fase de vingança —, mas nunca entra totalmente nesse estilo de vida. Pelo contrário, na última etapa, ela representa o ativismo comunitário que abre portas de cidadania para fora do submundo, participando de uma organização artística da periferia. Já com o mocinho, Rudá Bocaiúva (Nicolas Prattes) acontece algo insólito: ele também sofre com uma armação, é preso e acaba assassinado.
 
Ambientada em Angra dos Reis e tendo a culinária profissional como principal adereço de fundo, a ficção histórica transita entre células sociais onde imperam a desconfiança. Pelas circunstâncias da cadeia, um trisal quase se forma; há também dois maridos (bem) ciumentos — e um deles não só muda, como, pensando que tem pouco tempo de vida, tenta arrumar um parceiro para a esposa; há ainda gente como a portuguesa Filipa (Joana de Verona), uma incógnita. No entanto, não só o senso de justiça fala mais alto, como o rumo está na regeneração jurídica do núcleo principal, ou, pelo menos, ganhando uma segunda chance enquanto família e reforço do vínculo materno.
 
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